Semíramis Franciscato Alencar Moreira
Desde os primórdios da educação, quando na Grécia um tipo de escravo, o “Paidós”, era encarregado da condução das crianças aos preceptores, havia censuras, castigos corporais e sanções psicológicas visando coibir qualquer manifestação espontânea do aluno.
Apesar do modelo educacional grego na antiguidade ser essencialmente dialógico, isso não significava que a liberdade de expressão ou de idéias fosse permitida. À todo momento na história da educação são encontrados resquícios de uma tradição conteudística docente. Até os dias atuais esta prática é amplamente difundida, ainda que haja teorias de vanguarda cujo intuito seja formar um alunado livre e capaz de interagir socialmente.
Posteriormente, a cultura do “decorum” teve seu apogeu na educação jesuítica e também no ensino do Alcorão: berço do ensino tradicional, o mais importante era a memorização dos pontos dados em aula. A idéia de uma livre expressão desse aluno, poderia se tornar uma ameaça para os sistemas educacionais em questão. O aluno é o ser sem-luz (alumni) portanto, incapaz de refletir acerca de sua própria existência.
Apesar de todos os avanços tecnológicos, científicos e filosóficos, o olhar revolucionário para a educação ainda se encontra limitado por forte influência tradicionalista. Talvez isso se deva aos métodos adotados pelos cursos de formação de professores.
Estes cursos ainda se utilizam de compêndios didáticos que valorizam o “decorum”, a sabatina, o professor como centro da atenção do aluno e detentor do saber.
Embora sejam mencionadas as práticas libertadoras como as mais precisas e desejáveis, o modelo aceito e irrevogável ainda é o método tradicional devido à comodidade que a transfusão traz aos professores se compararmos a educação formal com uma prática mais próxima da maiêutica socrática, onde o professor é uma ponte para cada entrevistado se conhecer.
José Luiz Ames
A idéia de representação de um indivíduo por outro é, essencialmente, moderna. Entre os antigos ela não existia, porque o cidadão exercia pessoalmente o poder no Estado. O conceito de representação política é uma elaboração moderna cujo sentido pressupõe um duplo significado presente no termo “representação”. Por um lado, representar é uma ação segundo determinadas regras de comportamento. Assim, se diz que o parlamento representa o país (ou o estado, ou o município) no sentido de que os seus membros agem em nome e por conta dos eleitores. Por outro lado, representar é possuir certas características que espelham ou evocam as dos sujeitos ou objetos representados. Assim, se diz que o parlamento espelha o país (ou o estado, ou o município) no sentido de que seus membros refletem os interesses dos eleitores.
Uma democracia é representativa no duplo sentido: possui um órgão no qual as decisões coletivas são tomadas por representantes; e espelha, através dos representantes, os diferentes grupos de interesse que se formam na sociedade. Ainda que esta concepção de representação seja geralmente aceita, não há acordo sobre como se dá esta representação. Diferentes respostas foram dadas à pergunta sobre quais os direitos e obrigações do representante político (o eleito) em relação aos representados (os eleitores) durante o exercício de seu mandato. Os distintos modelos de representação nascem desta questão.
Conforme o modelo da delegação, o representante é concebido como um executor da vontade dos eleitores que deve decidir as questões rigorosamente segundo as instruções recebidas. É uma espécie de embaixador privado de autonomia para mudar de posições em relação às questões em discussão não dando aos representantes a margem de manobra necessária. É o modelo defendido por Rousseau.
O modelo fiduciário atribui ao representante total autonomia para decidir segundo sua consciência. O sistema representativo brasileiro funciona segundo este modelo. É o modelo proposto por Burke. Pelo fato de não haver mecanismo de controle sobre os representantes, este têm um poder arbitrário constituindo-se antes num governo iluminado do que num governo representativo.
O modelo da representação profissional atribui às organizações profissionais e ideológicas o papel de representação legítima da sociedade. Assim, os diferentes ramos da vida econômica, mas também os outros grupos sociais e de interesses, como as religiões, as etnias, as preferências sexuais, deveriam estar representadas no parlamento, pois seriam a expressão dos interesses da sociedade. Atualmente, a representação de interesses profissionais faz-se através dos grupos de pressão.
Os três modelos têm limitações que comprometem a adequada representação política. O mais adequado seria que o representante tivesse certa margem de autonomia para articular, para fazer composições com os demais, tal como o modelo fiduciário permite. Contudo, é importante que o representante permaneça com o vínculo de obrigação para com os eleitores, como exige o modelo da delegação, garantindo seu controle pelos eleitos. Enfim, que os diversos interesses da coletividade estivessem representados no poder, como quer o modelo da representação profissional.
No modelo de representação brasileiro, notamos a ausência de mecanismos de controle do eleito pelos eleitores. Os representantes têm absoluta liberdade para decidir, em geral de modo secreto, sem que os eleitores possam intervir no seu mandato. Com isso, em geral os representantes acabam desvinculados dos interesses dos cidadãos, em nome dos quais deveriam decidir.
*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/Campus de Toledo.
José Luiz Ames
Um pleito eleitoral chama a atenção por muitos aspectos. Quero comentar aqui a função (ou a ausência de função) dos partidos políticos na definição das propostas e dos resultados da eleição. Fica claro no material de propaganda o foco sobre o qual se deseja que os eleitores se concentrem: o perfil individual dos candidatos. O nome dos partidos, quando aparece, é grafado em letras minúsculas contrastando com o tamanho do rosto dos candidatos. Nas candidaturas a presidente, o rosto do vice fica invariavelmente recuado, num plano inferior e num tamanho menor ao do titular. Qual o significado dessa linguagem? Qual a mensagem que a propaganda eleitoral passa ao focar o candidato e não o partido e quando projeta o titular num plano mais elevado do que o do vice?
Cabe, inicialmente, ter presente o conceito mesmo de partido político: uma associação definida teórica e ideologicamente que tem em vista a conquista e manutenção do poder político para, por meio dele, realizar finalidades de interesse geral. Na história do pensamento político, a origem do partido remonta à primeira metade do século XIX. Foi, desde o princípio, o mecanismo de ampliação da participação das diferentes camadas da sociedade nas estruturas de poder do Estado. No decurso da história, o partido político foi o principal instrumento através do qual os grupos sociais puderam exprimir as próprias necessidades e participar da formação das decisões políticas. Graças à função exercida pelo partido, a sociedade civil encontrou um mecanismo eficaz para viabilizar suas reivindicações e para exercer o governo do Estado.
A representação política em base ao partido confere a esta estrutura o papel de filtrar as necessidades da sociedade civil e de viabilizá-las através dos processos eleitorais. As metas e propostas não são de um candidato, mas de um partido. Assim, a definição das propostas guarda maior sintonia com as aspirações dos eleitores e a sua execução é avalizada pelo partido, que garante a realização.
Quando observamos o papel do partido na prática política brasileira constatamos uma inversão em relação à sua função estabelecida conceitualmente. As letras miúdas com as quais, em geral, são identificados os partidos é indicador de sua desimportância. Raramente as propostas são identificadas como integrantes de um programa partidário. Considerando a propaganda eleitoral, partido político é apenas um detalhe legal. Todos projetam unicamente seu perfil pessoal. Pensam em ganhar o voto do eleitor apresentando o melhor de sua biografia e uma lista de promessas sem qualquer indicação de sua viabilidade concreta.
Quando os profissionais da política, aqueles que vivem da política em vez de viverem para ela, criticam o povo porque este espera que eles sejam salvadores, deveriam lembrar-se que a sua prática é a primeira responsável por esta visão. Ao projetarem unicamente a figura do candidato, reforçam a idéia de que ele pode fazer milagres. A própria postura dos candidatos, de que darão origem a um novo tempo de prosperidade a todos, contribui fortemente para isso.
A mesma desimportância do partido expressa na letra miúda dos cartazes é também da função do vice. Todos projetam em primeiro plano o perfil do candidato titular. O vice, coitado, permanece na sombra, recuado a um segundo plano. Este, por sinal, deve ser o seu papel. A linguagem dos “santinhos” distribuídos na campanha aponta para o verdadeiro lugar que o vice ocupará. O vice, segundo as imagens impressas na propaganda, não tem luz própria. Nele ninguém vota; dele ninguém espera nada de próprio. Ele é, tal como o partido, apenas um detalhe legal. Ao menos nisto os marqueteiros da campanha são muito precisos em traduzir o que de fato os candidatos pensam.
*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/Campus de Toledo.
Estudos de Jusfilosofia: iniciando o diálogo da filosofia com a ciência do direito
by Francisco on terça-feira, 22 de agosto de 2006
Francisco Antônio de Andrade Filho
No caminho que, juntos, iremos percorrer, destacam-se as questões específicas de filosofia em sua interface com a ciência jurídica nos dias de hoje. Filósofos e juristas clássicos em diálogo na produção do conhecimento.
Concebe-se, aqui, a filosofia como um modo de pensar, uma postura diante do mundo, voltada para qualquer objeto: pode pensar a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos, a religião, a arte, o homem, a tecnologia, a vida, as pessoas, culturas, mundo. Não é coisa de outro mundo, não. Todos nós somos filósofos. É questão de querer exercer sua atividade mental, própria do ser humano. Os filósofos indagam sobre as realidades de sua época, fizeram surgir novas possibilidades, comportamento e relação social.
Nesta perspectiva, pesquisadores jusfilósofos (MARTINS-COSTA, 2000: 230) se envolvem por uma “ dúvida crucial: como compatibilizar a reflexão ética propiciada pelos novos paradigmas científicos com a racionalidade “utilitarista comumente atribuída ao regimento jurídico”?
Ponderam ainda outros estudiosos e pesquisadores ( BARBOSA, 200: 213), assim:
“ O Direito não é somente um conjunto de regras, de categorias, de técnicas: ele veicula também um certo número de valores (...). Cabe ao Direito, através da lei, entendida como expressão da vontade da coletividade, definir a ordem social na medida em que dispôe dos meios próprios e adequados para que essa ordem seja respeitada...”.
TÉRCIO SAMPAIO (1977: 9 a 17) entra no debate para entender a Ciência do Direito como um “sistema de conhecimento sobre a realidade jurídica”. Ele capta a “expressão ciência jurídica” com questões especiais altamente discussivas no campo filosófico. Existe uma epistemologia crítica do Direito? Seria este saber apenas “uma ciência normativo-descritiva, que conhece e/ou estabelece normas para o comportamento” humano?
E responde:
“[...] Ela é vista pelos juristas como uma atividade sistemática que se volta principalmente para as normas [...] Ciência da norma, a Ciência do Direito desenvolveria, então, um método próprio que procuraria captá-la na sua situação concreta [...] A captação da norma na sua situação concreta faria então da Ciência Jurídica uma ciência interpretativa. A Ciência do Direito teria, neste sentido, por tarefa interpretar textos e situações a ela referidos, tendo em vista uma finalidade prática [...] à medida que a intenção básica do jurista não é simplesmente compreender um texto - como faz, por exemplo, um historiador que estabelece um sentido e o movimento no seu contexto -, mas também determinar-lhe a 'força e o alcance, pondo-o em presença dos dados atuais de um problema'.
Por sua vez, NADER (1997: 3 a 13) percebe, inteligentemente, a íntima relação da Filosofia com o Direito. E sustenta:
[...] Na Jurisprudência, o conhecimento filosófico tem por objeto de reflexão o conceito do Direito, os elementos constitutivos deste, seus postulados básicos, métodos de cognição, teleologia e o estudo crítico-valorativo de suas leis e institutos fundamentais”.
De outro, segundo o mesmo jurista, a Filosofia [...] “No seu pensar e no seu fazer abrem-se os caminhos para a Ciência e para a Filosofia. Enquanto que a primeira vai reunir um conjunto sistemático de conhecimentos, a segunda vai identificar-se como exercício da razão na busca perene da ordem do universo.
E, num diálogo aberto do Direito com a Filosofia, o mesmo jusfilósofo reafirma forte:
“A Filosofia caracteriza-se como indagação ou busca perene do conhecimento, mediante a investigação dos primeiros princípios ou últimas causas. O espírito filosófico não se satisfaz com a leitura dinâmica dos fatos ou com simples observações. Ele questiona sempre e, de cada resposta obtida, passa a novas perguntas, até alcançar a essência das coisas”.
E hoje, em plena era digital, qual a postura da Filosofia e do Direito diante dos avanços científicos?
Hoje (ANDRADE FILHO, 2006: 29 – 54), essas questões se colocam à luz dos atos tecnocientíficos. Nesse sentido, o conhecimento do “tempo global” tem priorizado a dimensão tecnológica, em estreita sintonia com as relações de mercado. O saber e o conhecimento no mundo globalizado parecem perder muito de sua função de busca de sentido para a vida, o destino humano e a sociedade – do conhecimento esse não do “sentir e simbolizar” –, para tornar-se “produto comercial de circulação” orientado pelo novo paradigma da aplicabilidade.
Os paradigmas da pós-modernidade, que ensejam rotas previstas para o desenho do futuro humano, estão em crise. Por isso, é cedo ainda afirmar-se a prepotência da globalização em seu progresso de ciência e tecnologia.
É nesse ambiente que a Bioética nasce como um novo domínio da reflexão e da prática, que toma como seu objeto específico as questões humanas na sua dimensão ética, tal como se formulam no âmbito da prática clínica, jurídica ou da investigação científica, e como método próprio o conhecimento de diversos modelos bioéticos (SGRECCIA, 1996) articulados dialeticamente com saberes diferentes (método-relação), mas fortemente entrelaçados.
Assim, a Bioética e o Biodireito, hoje, se situam entre as duas formas do conhecimento humano: o saber simbólico e o saber científico. Ganham vitalidade como paradigmas da relação entre as ciências e as tecnologias; do saber científico e do saber simbólico em suas recentes descobertas A Bioética e o Biodireito cuidam da dignidade da vida, procurando a convergência amistosa entre estes saberes. Vale ressaltar, entre Filosofia e Direito integrados com as ciências e tecnologias.
Nesta linha de reflexão, Sartori (2001: 48-52) avança progressivamente no desafio da interdisciplinaridade do Direito com a Filosofia. E discute, assim:
[...] pode-se definir a Ciência Jurídica como ciência normativa que verifica os fatores que determinam expressamente as condutas em normas. Sob essa orientação, a Ciência Jurídica se aproxima da Ética, ou seja, a primeira examina normas jurídicas e a outra normas morais [...] Seus elementos constitutivos são: ideais de justiça por alcançar, instituições normativas por realizar, ações e reações dos homens frente a esses ideais e instituições (...)
[...] Opondo-se ao Direito positivo, está o Direito Natural que pode ser definido como o pensamento jurídico que concebe a lei (a norma) quando esta esteja de acordo com a justiça. A pretensão do jusnaturalismo é a de conhecer como Direito o que é justo, ou seja, justiça como verdade evidente e demonstrável, dentro de um sistema de valores universais e imutáveis. Decorrente desses preceitos, a função do Direito não é comandar, mas, sim, qualificar as condutas como boas ou más (...)
[...] A velocidade do avanço das ciências da vida e a conseqüente necessidade de uma nova ética exigem uma resposta do Direito, ou seja, uma criação jurídica para positivar, regular e/ou reconhecer os Novos Direitos. Atualmente , são necessários princípios axiológicos que atendam à produção do conhecimento das últimas décadas do século XX e que se projetem no século XXI (...).
Suporte bibliográfico
ANDRADE FILHO, Francisco Antônio de. Bioética e cidadania: Interface da Filosofia com o Direito, in: REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO/FACULDADE MAURÍCIO DE NASSAU. Ano 1, n. 1, 2006: 29-54.
BARBOSA, Heloísa Helena. “Princípios da Bioética e do Biodireito”, in Bioética, REV do Conselho Federal de Medicina, vol. 8, n. 2 (2000): 209-216.
MARTINS-COSTA, Judith. “A Universidade e a Construção do Biodireito”, in Bioética _ Revista do Conselho Federal de Medicina, v. 8, n. 2 (2000): 229.
NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Florense, 1997.
SARTORI, Giana Lisa Zanardo. Direito e Bioética: O desafio da interdisciplinaridade. Erechim RS: EDIFAPES, 2001
* Francisco Antônio de Andrade Filho é Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência, na área de Filosofia Política, pela UNICAMP/SP. Professor Titular, aposentado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Docente em Filosofia na Faculdade Maurício de Nassau, nos cursos de Administração, Direito e Enfermagem. Membro do Comitê de Ética de Pesquisas em seres humanos, do Hospital Oswaldo Cruz – UHOC-UPE. Avaliador do Curso de Filosofia/INEP/MEC.
José Luiz Ames
O processo eleitoral é o mecanismo institucional de escolha de nossos representantes. O que é um representante? A idéia de representação consiste na possibilidade de um indivíduo delegar a outro o direito de decidir e agir em seu nome. No direito privado, é isso o que fazemos quando passamos uma procuração a alguém. É importante frisar que, neste caso, a qualquer momento o representado pode revogar os poderes de seu representante legal.
O Presidente da República, o Governador do estado, o Prefeito do município, senadores, deputados e vereadores são “representantes” da população. Isso significa que delegamos a eles o direito de decidir e de agir em nosso nome sobre todas as questões que dizem respeito à vida coletiva. É como se tivéssemos passado a eles uma procuração autorizando os atos deles em nosso nome.
As eleições são o mecanismo através do qual determinamos a representação política. Não é, porém, qualquer tipo de eleições. É preciso que elas sejam competitivas e com garantias de liberdade para a expressão do sufrágio. Somente dessa maneira o voto poderá ser manifestação de um juízo e de uma escolha e não simples aclamação e investidura plebiscitária.
Teoricamente, o juízo e a escolha podem exercer-se tanto sobre pessoas quanto sobre programas e ações políticas. Na prática, especialmente no sistema representativo brasileiro, incidem sobre os representantes eleitos. O que é apresentado à avaliação dos eleitores não é tanto a imagem partidária quanto a pessoa do candidato. Nossos partidos não possuem unidade ideológica consistente e, por isso, definem suas posições pela viabilidade eleitoral e não pela unidade programática. Essa é a razão pela qual ocorrem todos os tipos de composições durante as eleições e mesmo depois de efetivadas. É puramente a lógica da oportunidade e da conveniência que as regula.
A ausência de verdadeiros partidos políticos em nosso meio explica em grande parte a precariedade do sistema representativo brasileiro. Considerando que as eleições consistem num juízo e numa escolha, ambos se exercem sobre o comportamento individual. Nada mais inconstante e imprevisível do que a conduta humana. Quando votamos, julgamos pessoas e as confirmamos no seu posto de representantes ou revogamos seu mandato. Como nosso juízo é estabelecido totalmente sobre uma promessa, não há nada que garanta seu cumprimento. Se votássemos em propostas partidárias, haveria estruturas institucionais responsáveis pela realização dos planos.
Assim como no direito privado o representado pode revogar os poderes que delegou ao seu representante legal, é fundamental que na representação política também existam mecanismos de controle sobre a ação dos representantes eleitos pelo povo. No caso brasileiro, podemos constatar que os mecanismos de controle sobre a ação dos representantes são precários. Os eleitores não têm como revogar o mandato de seus representantes quando a ação destes se distancia da vontade daqueles que os elegeram. Mesmo que o Presidente, o Governador ou o Prefeito eleitos não realizem as obras com as quais se comprometeram na campanha, ou que os senadores, deputados e vereadores não cumpram uma única de suas promessas, nada há para ser feito a fim de destituí-los de suas funções. Com isso, fica comprometido o próprio conceito de representação política, que pressupõe a sintonia entre a ação do representante e a vontade do cidadão.
Para que se desenvolva em nosso meio o sentido legítimo de representação política, precisamos desenvolver a cultura participatória dos cidadãos, criar partidos políticos que não sejam simples clubes de conveniência e extinguir o governo do segredo (a política dos gabinetes).
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/Campus de Toledo.
José Luiz Ames
Todos os candidatos cobram dos eleitores um “voto consciente”. Poucos, porém, se preocupam em detalhar esta exigência no sentido de mostrar o que entendem por isso. O que é um voto consciente? Em que condições é ele possível?
Todos os candidatos cobram dos eleitores um “voto consciente”. Poucos, porém, se preocupam em detalhar esta exigência no sentido de mostrar o que entendem por isso. O que é um voto consciente? Em que condições é ele possível?
Trata-se, sem dúvida, de um problema complexo cuja solução excede em muito o espaço desta reflexão. Penso, no entanto, poder contribuir para o seu esclarecimento e é com esse objetivo que faço as considerações a seguir. Realizar um ato consciente pressupõe a existência de três elementos: a) pleno conhecimento do seu conteúdo; b) liberdade para efetivá-lo; c) vontade deliberada de praticá-lo. No presente caso, a ação a ser levada a efeito é o voto. Cabe-nos, então, examinar se estes aspectos têm como se fazer presentes no exercício do voto.
Inicialmente, quanto ao conteúdo do voto: o que eu preciso saber para votar de forma consciente? Em primeiro lugar, é necessário conhecer as propostas do candidato. Quanto a isso, é preciso examinar, ao menos, o seguinte: as propostas são viáveis ou são promessas vazias? A quantidade das propostas é compatível com o volume de recursos e o tempo disponível? Respondem à ordem das prioridades e urgências de interesse da maioria ou são em benefício de grupos minoritários? O comportamento mais comum da parte dos candidatos é impressionar os eleitores com uma relação de propostas sem mostrar como será possível realizá-las. São, na verdade, promessas vazias. Em segundo lugar, é preciso conhecer a própria pessoa do candidato. Quais ações desenvolvidas por ele o credenciam para o exercício do cargo pleiteado? É somente uma pessoa de prestígio ou já demonstrou possuir capacidade administrativa para o exercício do cargo pretendido? Quais os valores que defende? É alguém de convicções firmes ou muda ao sabor das conveniências? Pode comprovar sua honestidade e integridade ou seus negócios estão repletos de sombras?
Quanto à liberdade de voto: um ato consciente requer a ausência de quaisquer constrangimentos para sua efetivação. Podem os eleitores decidir sem medo de retaliação futura? Quando há um candidato apoiado pela situação, cabe questionar: os servidores públicos podem externar sua opinião, quando contrária ao candidato situacionista, sem receios sobre sua situação futura? Afeta também a liberdade a oferta de bens ou serviços em troca do voto. O candidato que compra o voto constrange a liberdade do eleitor. A liberdade é comprometida ainda pela manipulação das informações durante a campanha. Isso pode acontecer através de diferentes modos: por pesquisas de intenção de voto “encomendadas” para iludir os eleitores e induzi-los à determinada opção; pelo emprego de técnicas de propaganda para realçar os aspectos mais atraentes e esconder os negativos; pela intimidação dos adversários.
Por fim, o voto consciente exige que o eleitor tenha a vontade deliberada de praticá-lo. Votamos porque estamos convencidos da importância do ato ou porque a lei nos obriga? Não parece ser possível votar de forma consciente quando se é constrangido a isso, ainda que o seja pela força da lei.
As considerações acima revelam as limitações da campanha política no sentido de levar o eleitor a um voto consciente. Ainda que ele acompanhe a propaganda eleitoral no rádio e na TV, participe dos debates, leia os materiais de divulgação, dificilmente estará suficientemente consciente de todos os aspectos envolvidos no voto. É bom que se diga que o problema não está na dificuldade de compreensão do eleitor, e sim na forma como os candidatos desenvolvem sua campanha.
Pessoalmente estou convencido de que o voto (ainda) é determinado muito mais por estratégias de êxito dos “marqueteiros” da campanha do que pela consciência dos eleitores. Num jogo de sombras e luzes, a eleição transformou-se num grande espetáculo no qual interessa convencer os eleitores e não expor a verdade. Dane-se a viabilidade das propostas, pensam candidatos! Afinal, quem se lembra ainda das promessas da eleição passada, feitas e não cumpridas? Quando o questionamento surge, sempre é possível uma boa explicação para a inexplicável omissão na execução das propostas. Basta um eficiente jogo de sombras e luzes. Vote consciente, se for possível!
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/Campus de Toledo.
José Luiz Ames
O horário da propaganda eleitoral no rádio e na TV dos candidatos, especialmente daqueles que disputam cargos executivos, em geral dedicam boa parte do tempo à exposição da sua vida privada. Por que os candidatos exploram essa questão no horário eleitoral? Qual importância tem para a atividade política a vida privada dos candidatos?
Colocar candidatos a falar de si mesmos, a apresentar suas supostas qualidades e a discorrer sobre os pontos altos das próprias biografias é uma estratégia comum de “marqueteiros políticos”. Estratégia comum, mas de escassa utilidade para o eleitor, pois cada candidato seleciona de sua biografia unicamente o que lhe parece possuir de melhor. Ninguém fala das suas limitações, muito menos dos aspectos que poderiam merecer críticas.
É exatamente sobre este último ponto que pretendo tecer minhas considerações. O que leva um candidato a expor a sua vida privada em público? Difícil acreditar que seja o desejo de se mostrar por inteiro aos eleitores. Como ninguém revela a intenção que está por detrás desta exposição, deixam caminho aberto a que especulemos sobre isso.
A exposição da vida privada transforma o horário de propaganda eleitoral num espetáculo patético. Ao exporem detalhes da vida íntima, os candidatos convidam os eleitores para adentrarem em todas as dependências de suas casas. Nem mesmo o quarto do casal, com seus segredinhos e suas cumplicidades, fica excluído. É uma invasão da privacidade, consentida e até solicitada pelos candidatos, que envergonha até as pessoas mais destituídas de pudor. Esta prática somente teria sentido se o pleiteante ao cargo executivo tivesse de ser para seus cidadãos um bom pai ou um bom marido. Suponho que nenhuma esposa e nenhum filho dos candidatos o desejaria “emprestar” para isso! Talvez seja, numa interpretação psicanalítica, o que se chama de “ato falho”: os candidatos revelam sua concepção paternalista do Estado. Na condição de “pais”, têm o dever de preocupar-se com a saúde espiritual, moral e material dos “filhos” e, portanto, o dever de intervir na formação de sua personalidade, a fim de dirigi-la no rumo do bem. Não é preciso muita inteligência para perceber que esta visão esconde a idéia de que os cidadãos são considerados eternos menores dependentes do “pai” governante. No fim das contas, é o que desemboca no despotismo. Infeliz o povo que tem governantes desse nível!
Ao misturarem o privado e o público, os candidatos passam a seguinte mensagem aos eleitores: todo seu passado da vida privada deve ser objeto de avaliação no momento do voto. Cada um, agora, está autorizado a pedir explicações da vida íntima deles. Além de ser uma invasão indevida na esfera privada, traduz o desconhecimento do significado de “homem público” que a função pleiteada implica. O espaço público, esfera em que o candidato eleito atua, diz respeito ao que é visível a todos, àquilo que é comum a todos. O homem público não torna públicas suas desavenças com a esposa, as discussões com os filhos, suas crises de fé. Faz em público apenas aquilo que o "público" está em condições de compreender, o que tem alguma função ou importância pública. Ou seja, aquilo que não exige que aquele que o ouve e vê o conheça e aquilo que pode interessar a quem não o conhece. Qualidades e defeitos morais que atingem o comportamento dos homens públicos como pais, maridos, fiéis de alguma igreja, têm importância unicamente na esfera privada.
Ao exporem suas vidas íntimas, os candidatos prestam um desserviço à formação da cidadania. Tomara que não seja uma estratégia para desviar os eleitores do principal: o que pensam da vida política, o que pretendem no exercício do cargo e como imaginam viabilizar suas propostas sem truques nem ilusões. Seria triste se o pretendido fosse um jogo de ocultação, pois a utilização de argumentos da vida privada para obter vantagens para a vida pública ou é irresponsabilidade ou é manipulação. Nos dois casos são confissões de inaptidão ao exercício de funções públicas.
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/campus de Toledo.
José Luiz Ames
Nas democracias representativas ocidentais, o mecanismo eleitoral é o instrumento fundamental do exercício da soberania pelo povo. Nossa tradição democrática tem limitado, com raras exceções, o exercício do voto sobre candidatos e não sobre temas ou propostas. O problema que a existência de grandes aglomerados humanos levanta é como escolher dentre um vasto leque de candidatos aqueles que deverão representar o conjunto dos cidadãos. O mecanismo encontrado por nossos legisladores é o da instituição de um horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Imaginaram os legisladores que, desta maneira, cada candidato poderia se apresentar aos eleitores e discutir suas propostas. Qual é a impressão que o horário de propaganda eleitoral deixa?
O desfile de rostos e vozes através da propaganda eleitoral na TV e no rádio deixa uma sensação de desespero. É como se estivessem pedindo socorro à beira de um abismo. Voz e olhar são de súplica. Nos dez a quinze segundos que cada candidato dispõe, ele consegue dizer o seu nome, seu número, pedir o voto para si e pronunciar mais três a quatro palavras soltas. Ultimamente, exigiram deles ainda que durante os poucos segundos pedissem voto ao seu candidato ao cargo majoritário!
É preciso admitir que é difícil escolher alguém a partir do que se ouve e vê na propaganda eleitoral. Ao menos não em base ao que deveria ser o critério da decisão: as propostas dos candidatos. E por uma razão óbvia: ninguém apresenta propostas. As palavras soltas que se ouvem (“mais creches”, “mais saúde”, “mais educação”, “mais segurança”, etc.) são absolutamente inúteis para estabelecer um juízo.
Submeter candidatos à semelhante vexame é um insulto à decência. O eleitor fica com a impressão de que são todos ocos de propostas simplesmente porque o tempo de que dispõem não lhes permite dizer sequer uma frase completa com sentido. Os dois comportamentos mais freqüentes em relação ao horário da propaganda eleitoral que podem ser constatados, ambos inadequados dada a importância do evento, têm sido estes: desligar o rádio ou a TV durante os minutos do programa; ou manter os aparelhos ligados para fazer chacota das figuras que desfilam. Alguns, e me incluo entre eles, mantêm os aparelhos ligados, não para satisfazer a vontade de zombar, mas levados por um sentimento de tristeza: cada um diz que é amigo, que o conhecemos e quer nossa ajuda. Como não sabemos de que maneira podemos ajudar a todos e como não conseguimos escolher um preferido, nos deprimimos diante da nossa impotência.
Considero que a propaganda eleitoral no rádio e na TV, nos moldes atuais, é inútil para a finalidade para a qual foi criada. É vexatória para os candidatos e motivo de irritação para os eleitores. Nada acrescenta à formação do espírito de cidadania. Urge pensar um formato que permita a cada candidato dizer o que pensa e apresentar o que pretende, mesmo que, para tanto, possa fazer uma única aparição em todo período de propaganda eleitoral.
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/campus de Toledo.
José Luiz Ames
A democracia, como sabemos, significava nas suas origens gregas “poder do povo”. O povo exercia o poder diretamente na assembléia ao ar livre, decidindo as questões publicamente. Na passagem da democracia direta (dos antigos) para a democracia representativa (a atual), desaparece a praça, mas não a exigência de dar publicidade às decisões. Assim, podemos dizer que a idéia de democracia está intrinsecamente relacionada ao caráter público das decisões.
Paradoxalmente, o poder ama o segredo. Na sua forma mais autêntica, o poder político sempre foi concebido à imagem e semelhança do poder de Deus, que é onipotente exatamente porque Ele vê tudo sem ser visto por ninguém. Por isso, quem exerce o poder sente-se tanto mais seguro de obter os efeitos desejados quanto mais invisível se torna àqueles aos quais pretende dominar. Ocultar as intenções e dissimular os propósitos, parece ser a chave do êxito. Sempre foi considerada uma das virtudes do soberano o saber simular, isto é, fazer parecer aquilo que não é, e saber dissimular, isto é, não fazer parecer aquilo que é.
A técnica do poder secreto adota duas estratégias complementares: subtrair-se à vista do público no momento em que são tomadas deliberações contrárias à vontade do grande público; e a encenação quando é obrigado a apresentar-se em público. A encenação serve-se, sobretudo, da linguagem que, adequadamente usada, permite ocultar os verdadeiros propósitos. Esta ocultação pode ocorrer de duas maneiras: usando uma linguagem compreensível somente àqueles que pertencem ao círculo íntimo do poder; ou então usando uma linguagem comum para dizer o oposto daquilo que se pensa.
O desafio democrático é vencer a técnica do poder secreto. Democracia e segredo são inconciliáveis. A democracia somente é real quando os governos são obrigados a prestar contas das suas decisões ao público. Dessa maneira, tornam impossível a prática do “segredo de gabinete” próprio dos regimes despóticos. Kant, filósofo alemão do século XVIII, aponta para a razão fundamental da condenação à prática do segredo na política: “uma máxima que eu não possa confessar publicamente sem provocar a resistência imediata de todos contra o meu propósito não pode explicar essa reação necessária e universal de todos contra mim a não ser pela injustiça com a qual ela ameaça a todos” (À paz perpétua, p. 73).
O pressuposto dessa afirmação kantiana é claro: manter em segredo um propósito, um pacto, ou qualquer providência pública é, por si só, uma prova da sua ilicitude. A fim de que o princípio da publicidade possa ser realizado pelo político, é preciso que o poder público seja controlável. Esse controle, como sabemos, só é possível naquela forma de governo na qual o povo tem o direito de participar ativamente da vida política.
A visibilidade de todos os atos de governo é a característica mais nítida da democracia. Na estrutura física na qual funciona um governo democrático não deveriam existir gabinetes. Eles são o símbolo da ocultação, do segredo. Somente déspotas se escondem do povo. Apenas quem quer acobertar privilégios toma decisões em salas fechadas. A única coisa secreta numa democracia deveria ser o voto do cidadão.
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste.
José Luiz Ames
A opinião comum é de que democracia e princípio majoritário são conceitos equivalentes. Esta sobreposição deriva da equivocada interpretação da definição clássica da democracia como governo da maioria. Contudo, quando Aristóteles define democracia como governo da maioria, ele quer dizer que o poder político está nas mãos de muitos em oposição ao poder de um só ou de poucos, mas não, em absoluto, que o poder político é exercido mediante a aplicação da regra da maioria.
Os argumentos a favor da regra da maioria para a tomada de decisão podem ser reduzidos a dois fundamentais. Conforme o primeiro argumento, a regra da maioria seria justa porque permitiria, melhor do que qualquer outra, a realização de alguns valores fundamentais como a liberdade e a igualdade. Aparece, pois, como um remédio contra a eleição de um autócrata que não respeita a liberdade dos cidadãos nem os reconhece como iguais. Conforme o segundo argumento, a regra da maioria seria justa porque permitiria chegar a uma decisão comum entre pessoas que têm opiniões distintas. Aparece, pois, como um expediente técnico e um remédio eficiente contra a exigência da unanimidade.
Em relação ao primeiro argumento, de que o que caracteriza a democracia é a autodeterminação ou o consenso do maior número, é preciso observar o seguinte. Para que se possa afirmar que um sistema é democrático não basta saber que a regra da maioria maximiza a autodeterminação e, portanto, o consenso, mas é necessário saber quantos e quem são aqueles que se beneficiam das vantagens do princípio da maioria. Quer dizer, é bem possível que uma decisão, mesmo quando tomada pela maioria, beneficie os interesses de grupos e não a universalidade. Isto é particularmente verdade, porque o voto pressupõe uma série de condições que raramente ocorrem na prática: garantia de liberdade de manifestação, pluralidade de formação política, voto secreto, etc.
Em relação ao segundo argumento, de que na democracia prevalece a vontade da maioria contra a da minoria, é preciso ponderar o seguinte. Ainda que o ideal do consenso unânime não seja possível e, por isso, a regra da maioria seja o único modo de formação de uma vontade coletiva, é preciso notar que ela não pode sufocar o dissenso. Quer dizer, é bem possível que uma decisão, mesmo que seja tomada pela maioria, não seja democrática. Isto é particularmente verdade quando ela implica na proibição da manifestação da minoria na defesa de seus interesses.
A regra da maioria não é sinônimo de democracia. Se fosse, teríamos que chamar Cuba de Fidel Castro de democracia, pois lá o Parlamento é eleito com números próximos à unanimidade! Para que a regra de maioria seja um instrumento democrático é preciso que a decisão possa ser tomada sem receio de punições, exista livre debate das posições antagônicas, e seja assegurado às minorias plenos direitos, inclusive de derrubar os dirigentes. Pelo voto! A decisão da maioria só é democrática quando expressa o interesse da coletividade. Decisões de maioria que criam privilégios são ofensas à democracia e deveriam ser desobedecidas. É a desobediência civil legítima.
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste, campus de Toledo.
José Luiz Ames
Quando falamos em democracia, o que nos vem à mente? A primeira coisa é o dia das eleições com suas longas filas de cidadãos a espera de sua vez para votar. Quando o noticiário apresenta a queda de uma ditadura, o anúncio de maior impacto é o da data das eleições dos novos governantes. Democracia, entre nós, está associada intrinsecamente ao voto. Não, porém, o voto para decidir, mas para eleger quem deverá decidir por nós!
Esta imagem de democracia é bem diferente daquela que dominava entre os antigos atenienses, na qual esta forma de governo nasceu. Para aquele povo, por volta do século V antes de Cristo, a idéia de democracia estava associada a uma praça, ou assembléia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles mesmos as decisões que lhes diziam respeito. Democracia significava o que a palavra designa literalmente: “poder do povo” e não o que significa hoje, “poder dos representantes do povo”.
Todas as constituições democráticas atuais, inclusive a nossa, afirmam que o povo é “soberano”. No entanto, de tudo aquilo que se decide ou se trama no subsolo da vida política, o “povo soberano” não sabe absolutamente nada, e aquilo que sabe está quase sempre errado. Assim, na medida em que é negado ao cidadão comum o acesso à decisão política, na prática ele passa de soberano a súdito.
As sociedades democráticas atuais estão construídas sobre um duplo fundamento. Primeiro, o pacto de não-agressão de cada um com todos os outros. Segundo, o dever de obediência às decisões coletivas tomadas com base nas regras do jogo de comum acordo preestabelecidas. Dentre estas regras, a principal é aquela que permite solucionar os conflitos que surgem em cada situação sem recorrer à violência recíproca. Para serem eficazes, as duas bases da democracia precisam ser garantidas por um poder comum, o Estado.
A democracia é a conservação e o aperfeiçoamento contínuo de determinadas instituições, particularmente as que oferecem aos governados a possibilidade de criticar os seus governantes e substituí-los sem derramamento de sangue. O principal instrumento democrático para dispensar os governantes e obter reformas sem recorrer à violência é a eleição geral. Na prática, só existem duas formas de governo: a democrática e a tirânica. O que as distingue é o fato de que somente na democracia é possível derrubar o governo sem recorrer à violência. A violência gera sempre maior violência. E as revoluções violentas matam os revolucionários e corrompem os seus ideais. Os sobreviventes são apenas os mais hábeis especialistas na arte de sobreviver.
Em essência, na base da sociedade democrática estão a liberdade e a justiça, mas nesta mesma ordem. Isto é, numa sociedade livre, mediante a crítica intensa e reformas sucessivas, também se poderá caminhar para a justiça, ao passo que, nas ditaduras e tiranias, onde não é possível a crítica, a justiça tampouco será alcançada. Neste tipo de sociedade, haverá sempre duas classes de homens: a minoria dos servos do tirano (privilegiados) e a maioria dos excluídos. Num ano em que teremos eleições gerais, isto é algo que nos deveria fazer pensar!
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste.