A Questão da Sexualidade em Alguns Romances da Literatura Brasileira

by Francisco on terça-feira, 10 de março de 2009

Clóvis Campêlo

Neste breve trabalho procuraremos estudar o relacionamento entre os principais personagens, no que diz respeito à questão da sexualidade, e como esse relacionamento se dá, ou não, dentro dos romances por nós escolhidos para a análise.

Em "O Guarani" (1857), de José de Alencar, a atração sexual existente entre Peri e Cecília, diante da rígida divisão hierárquica reinante na pequena comunidade governada por Dom Antônio Mariz, além de todo o preconceito social, racial e religioso, característicos da época, é camuflado das mais diversas maneiras: o índio sente por ela uma adoração mística, um fervor mariano que se aproxima dos sentimentos expressados pelo amor trovadoresco medieval e que faz com que ele abandone a sua gente e o seu modo de vida, aceitando viver na periferia da família Mariz apenas para satisfazer aos caprichos de Cecília. Em vários momentos chega mesmo a colocar a própria vida em risco para defender a vida de Cecília. O autor, na construção do perfil psicológico de Peri, reveste-o de uma dignidade desconhecida pelos nossos selvagens, haja vista que era outro o seu código de honra. Tentando colocá-lo à altura do amor de Cecília, despersonifica-o. Por seu lado, Cecília o vê como um ser primário e infantil, um diamante bruto a ser lapidado, uma alma a ser salva e usa estes pretextos para canalizar o sentimento de profunda atração que sente pelo índio. Ou seja, esse sentimento mútuo é revestido de uma “nobreza” que seria dispensável a qualquer autor de outra escola literária. Aliás, é notória, entre os autores românticos, a dificuldade sentida no que diz respeito a consumação do ato sexual entre os seus personagens. Em O Guarani, mesmo no final, quando para Cecília fica claro que Peri é a única coisa que lhe interessa, e para isso abre mão até da sua condição de civilizada, aceitando viver na floresta, ainda surge a natureza como último antagonista exigindo mais uma prova, por parte dos dois, para que esse sentimento se consolide. O livro termina, aliás, sem que a posse sexual se dê, deixando-nos o autor apenas com a perspectiva de que ela se dará em um tempo posterior ao da narrativa, o que não deixa de ser frustrante.

Em "Senhora" (1875), também de José de Alencar, em que pese tratar-se de um romance de costumes situado temporalmente muito depois de O Guarani, notamos a mesma disposição. Aprofundemos mais, no entanto, as nossas observações: Aurélia, moça pobre e apaixonada, vê-se de repente possuidora de uma herança grandiosa, o que lhe permite arquitetar um plano para também chegar à posse do seu bem amado (Seixas). Ou seja, em uma sociedade onde o poder era exercido pelo sexo masculino, um personagem feminino, por conta de determinadas circunstâncias, acha-se em condições de reivindicar. Consumado o fato, cria-se, por parte do autor, toda uma situação de conflito emocional que não permite uma aproximação maior entre os dois recém-casados. Embora não possa o autor contar com as circunstâncias utilizadas como empecilho entre Peri e Cecília (questões religiosas, sociais, raciais, etc.), considerando que a história se desenvolve em um ambiente urbano e burguês, o autor utiliza-se da questão financeira como antagonista. É preciso que Aurélia e Seixas se purifiquem através do sofrimento para fazer jus ao desfrute do relacionamento. Primeiro o sofrer, depois o gozo. Ainda assim, como em O Guarani, o autor apenas nos deixa o indicativo de que isso ocorrerá em um tempo posterior ao da narrativa.

Em "A Mão e a Luva" (1874), de Machado de Assis, já observamos uma mudança de atitude. O relacionamento homem-mulher se mostra menos conflitante, embora o desfecho ainda tenha que se sujeitar aos “laços sagrados” do matrimônio para ocorrer. Do ponto de vista psicológico, tanto Guiomar quanto Luís Alves mostram-se como pessoas mais maduras e que, em função desse amadurecimento, sabem como contornar os obstáculos e chegar a um desfecho favorável. No entanto, talvez pela ausência do elemento emocional, o enredo pareça-nos retilíneo e previsível, sem as sinuosidades dos livros anteriormente analisados. Embora Guiomar já se mostre determinada, ainda não apresenta certas características peculiares aos personagens femininos machadianos, como veremos a seguir com Capitu.

Em "Dom Casmurro" (1899), também de Machado de Assis, entre em cena o adultério, um elemento ainda não explorado nas histórias anteriormente analisadas. No nosso entender, ao abordar tal questão, Machado de Assis mostra-se mais maleável do que outros autores românticos, como Flaubert e Eça de Queiroz, que embora criticassem o modo de vida burguês dão como desfecho às suas narrativas uma solução completamente aceitável dentro da moral burguesa: a morte das adúlteras. O escritor brasileiro mostra-se muito mais sutil. Faz com que cheguemos ao final da narrativa sem termos a certeza de que Bentinho foi realmente traído ou se tenha criado mentalmente toda aquela situação. Enquanto Eça e Flaubert tratam a questão do adultério de modo explícito, Machado apenas o insinua através da voz de Bentinho. Passemos, no entanto, às características de Capitu a que acima nos referimos. Características estas que, de início, apresentam-se como positivas e que, posteriormente, vão servir para alimentar as dúvidas de Bentinho em relação a sua situação de marido traído. Estas características são o poder de iniciativa e de decisão, aliados a uma certa autonomia que, decerto, não seriam comuns às mulheres da época. Em Dom Casmurro já observamos também, ao nível da narração, a menção de certos contatos corporais (beijos, carícias), muito embora o ato sexual em si, para se concretizar, ainda dependa do casamento, espaço legitimamente aceito pelo código social da época. O final da história (outra característica machadiana) é muito menos dramático do que em Alencar, Eça ou Flaubert, acima citados, caminhando de uma forma quase natural para o seu desfecho. Em relação ao desfecho, aliás, observamos ainda que Dom Casmurro difere dos romances anteriormente analisados onde o final feliz indica o restabelecimento de uma ordem anteriormente existente. Após os conflitos que permeiam o romance, o final se dá com a separação dos protagonistas e com a morte de Capitu na Europa (ainda a punição burguesa?). Cria-se assim a possibilidade de uma nova ordem que necessariamente não tem a ver com o equilíbrio inicial.

Em "O Cortiço" (1890), de Aluísio de Azevedo, essa relação bilateral é quebrada, sendo-nos mostradas várias outras facetas: o relacionamento de João Romão e Bertoleza, de Rita e Jerônimo, de Pombinha com a francesa, etc. O relacionamento sexual é abordado sem os rodeios das obras anteriores, ficando em nós a interrogação em relação ao que mudou dentro do código moral da época, já que o romance é contemporâneo de vários outros já estudados. Consideremos, também, que, dentre as obras analisadas, é a primeira a abordar a questão em relação às camadas sociais mais inferiores. Como sabemos que a obra tem um caráter crítico sobre o que o autor considera como a degeneração da raça brasileira, fica-nos a impressão de que a abordagem é feita de forma distorcida, vista ainda sob a ótica da moral burguesa. Senão vejamos: João Romão é censurado pela exploração tanto sexual quanto da força de trabalho de Bertoleza; o sentimento de Jerônimo por Rita beira o irracionalismo romântico, e mesmo a relação homossexual entre Pombinha e a francesa, para nos prendermos apenas a estes três casos dentro do romance, não são mostrados como um avanço no sentido de provocar mudanças dentro do padrão moral da época. O autor prefere encará-los como mais uma prova da decadência moral (determinismo?) a que estaria sujeito o nosso povo.

Em "O Ateneu" (1888), de Raul Pompéia, essa relação bilateral também é quebrada e o romance não se assenta em cima de uma relação direta entre homem e mulher. É levantada a questão do homossexualismo masculino, também de forma distorcida, repleta de justificativas e de sentimentos culposos. O que nos chama a atenção, no entanto, é a visão deformante que o personagem central da história, Sérgio, tem em relação às mulheres: Ângela, a bela emigrante canarina, é vista por ele como algo tentador, mas ao mesmo tempo agente da destruição – é em conseqüência dela que ocorre um assassinato dentro do Ateneu; a criada que toma conta dos dormitórios é vista como uma figura aterradora e sobrenatural, e por dona Ema, esposa de Aristarco, manifesta um sentimento edipiano. Consideremos também que entre as obras analisadas é a primeira com um caráter autobiográfico, onde talvez encontre razão de ser as justificativas utilizadas pelo autor para explicar às tendências existentes nas relações do seu personagem protagonista.

Em "São Bernardo" (1934), de Graciliano Ramos, a relação entre Paulo Honório e Madalena se dá sem as tintas do Romantismo. E se em alguns momentos nos lembra o racionalismo de A Mão e a Luva, o sentimento de posse manifestado por Paulo Honório em relação a Madalena, que é vista como mais um bem a ser conquistado, de certo modo, também nos lembra a relação de João Romão e Bertoleza, em O Cortiço. Madalena é conquistada por Paulo Honório para dar vazão ao desejo deste de ser pai e constituir um herdeiro para os seus bens, conquistados de maneira nem sempre muito correta. Sem nenhum sentimento mais profundo, Madalena também se deixa levar diante da perspectiva de melhoria de vida, do ponto de vista econômico e financeiro. A sua recusa, no entanto, em transformar-se em objeto possuído, bem como o ciúme doentio e o sentimento castrador de Paulo Honório em relação à coisa possuída, faz com que o relacionamento chegue a um impasse que só encontra saída com o suicídio de Madalena. Seu estado psicológico, que a leva a ver apenas o ato extremado como a única saída para o impasse, deixa-nos claro que, naquela época, a situação da mulher dentro da sociedade ainda não lhe abria espaços para outra saída menos dramática.

Publicado no JC Cultural, Recife, em 05/02/1993, p. 7-8.

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