José Luiz Ames
Na vida política, estamos acostumados à idéia de que existem alguns que mandam (os governantes) e outros que obedecem (os governados). Por que obedecer? O que torna o mando legítimo? A presente lição é extraída das reflexões de um filósofo político medieval: Marsílio de Pádua. Para este filósofo, a fonte originária do poder reside no povo tomado em seu conjunto. A lei é inventada pelos cidadãos. Uma lei que não tenha merecido a aprovação do corpo dos cidadãos é ilegítima.
Marsílio apresenta diversos argumentos para fundamentar essa posição. Primeiro, que o conjunto dos cidadãos é capaz de perceber com mais precisão uma falha na lei do que uma parcela de pessoas, ainda que sejam peritas. Segundo, uma lei aprovada por todos é observada na prática, porque ela não aparece como uma imposição externa. Terceiro, uma lei nascida da vontade do conjunto dos cidadãos necessariamente expressa o que interessa a todos, porque ninguém se prejudica conscientemente.
A exigência da participação do conjunto dos cidadãos para a formulação da lei aponta para a sua origem humana. Essa posição é frontalmente contrária à concepção medieval, que atribuía a origem da lei a Deus ou à natureza. Além disso, ao cobrar a participação da totalidade dos cidadãos, mostra a necessidade do consenso para dar obrigatoriedade à lei. Marsílio torna-se assim o primeiro a defender em plena Idade Média a discussão pública valorizando a voz do povo na formação da comunidade política.
A esta lei todos, sem distinção, estão submetidos de maneira igual. Não há privilégios nem aos ricos, nem ao clero. Os próprios governantes estão submetidos à lei, podendo ser depostos pelo povo sempre que comprovadamente a descumprirem. Assim, o problema de saber o que torna legítimo o mando fica respondido: é o governo segundo a vontade soberana do povo. O povo não obedece a um poder estranho e oposto a ele, mas a si mesmo. O governante é aquela pessoa encarregada pelo povo para aplicar a lei. Seu poder tem a exata dimensão daquilo que o povo lhe confere. Não lhe cabe fazer promessas, nem inventar regras segundo sua conveniência.
A contribuição de Marsílio para nossa vida política atual está em mostrar a necessidade de buscar o consentimento do conjunto dos cidadãos para dar legitimidade às ações políticas. Marsílio recomendaria a resistência cívica às leis impostas contra a vontade da população. Para ele era claro que justo é tudo o que está de acordo com a vontade da maioria, injusto o que violenta o interesse geral. Nossas orgulhosas instituições democráticas atuais em muito melhorariam se aprendêssemos essa lição desse pensador político medieval.
*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.
2 comentários
Achei interessante seu posicionamento,embora não concorde na sua totalidade. Se o povo não é capaz de escolher um representante que guarda e protege os nossos direitos à vida, liberdade, segurança. Se o povo escolhe um representante que viola os direitos individuais em prol de direitos particulares ou de poucos, para mim,esse governo é ilegítimo. Embora a lei nasça dos fatos sociais, dos costumes e da necessidade, ela nem sempre é equilibrada e garante a paz e a justiça. Por que? Porque ao longo dos anos, o povo, o mesmo povo que "participa" da elaboração dessas leis escolheu mal seus representantes. Então, quando você diz que " justo é tudo o que está de acordo com a vontade da maioria, injusto o que violenta o interesse geral" você está sendo paradoxal, considerando a sociedade e o Estado que somos e temos. Mas concordo com seu raciocínio quando percebo que, se tivessemos outra postura, os princípios sempre estariam presentes na formulação das leis e o direito, como disse Tomás de Aquino,seria a própria coisa justa.
Enfim,espero ler outras reflexões suas. :)
by Mila Diniz on 25 de março de 2009 às 14:37. #
Prezado (a) Comentarista:
Primeiro, muito obrigado por ler e comentar o meu trabalho. O objetivo de quem escreve é tornar seu texto acessível ao leitor. É um orgulho quando o leitor se posiciona e contra-argumenta ao texto.
Em relação às suas ponderações: a reflexão tem por objeto apresentar a posição de um pensador medieval, um filósofo que escreveu sua obra no século XIV! Meu objetivo era mostrar primeiramente a novidade contida na sua reflexão, considerada a época em que escreve; depois, mostrar que ela guarda atualidade. Seu comentário reforça minha suspeita.
Veja bem: partindo do pressuposto marsiliano, que atribui a origem da lei à vontade soberana do povo, justa passa a ser essa mesma vontade e não algum conteúdo externo a ela (como uma "lei natural", algum princípio moral, algum valor relgioso, etc.). A legitimidade da lei é dada pela forma de sua originação e não por seu conteúdo.
Além disso, você pondera que "Se o povo não é capaz de escolher um representante que guarda e protege os nossos direitos à vida, liberdade, segurança. Se o povo escolhe um representante que viola os direitos individuais em prol de direitos particulares ou de poucos, para mim,esse governo é ilegítimo". Note que o pressuposto marsiliano da legitimidade da lei estipula que a violação da lei pelo governante o sujeita à sanção do legislador, que pode decidir por sua demissão.
Bem, gostei de sua intervenção. Nessa mesma página mantida pelo prof. Francisco você encontrará muitos outros trabalhos meus que esse meu amigo teve a gentileza de postar.
Um abraço
José Luiz
by José Luiz on 26 de março de 2009 às 07:05. #