José Luiz Ames
Durante a Idade Média, a forma de organização política típica é a do Reino. Um Reino é governado por um monarca. Era incontestável que a sucessão hereditária era a maneira mais legítima de continuidade do poder político. Fundado nesse direito, constituíam-se as dinastias: famílias que detinham de forma vitalícia o privilégio de dirigir o Reino.
Marsílio de Pádua contesta frontalmente essa tradição. Enfrenta os defensores da monarquia hereditária, examina os argumentos que estes apresentam e os refuta um a um. Diziam os defensores da monarquia hereditária que o rei com direito à sucessão “zelaria com muito mais empenho pela coisa pública, considerando-a como sua propriedade”. Diziam ainda que o monarca hereditário estaria menos sujeito a governar despoticamente; que estaria mais propenso à prática das virtudes; que a ausência de eleições evitaria despertar nos súditos a ambição pelo poder; etc.
Marsílio rebate dizendo que o zelo da coisa pública é garantido pela escolha de um governante justo e capaz e pela lei aprovada pela coletividade. Somente a eleição garante que o povo será governado pelo melhor dos cidadãos. Marsílio estava convencido de que o povo escolheria seu soberano a partir das virtudes que ele apresenta. Ele inclusive relaciona quatro qualidades imprescindíveis a um candidato a governante: prudência, justiça, eqüidade e zelo pelo bem geral dos cidadãos. Quanto ao risco de governar despoticamente, Marsílio argumenta que isso é fruto da impunidade. Governa despoticamente quem considera estar acima da lei. Enfim, quanto ao argumento de que as eleições despertariam no peito das pessoas a ambição pelo poder, Marsílio responde que, pelo contrário, desperta nos homens o desejo de serem virtuosos. Sabendo que as pessoas querem ser governadas por indivíduos justos e capazes, cada um se esforçará por ser melhor de modo a um dia poder ser candidato. Assim, as eleições são também um instrumento para melhorar a qualidade moral dos indivíduos.
Com estas considerações Marsílio revela toda sua atualidade. Em plena Idade Média já percebeu que o melhor instrumento para escolha daqueles que devem dirigir a vida pública é a eleição. Ele não estava cego para problemas que conhecemos muito bem em nossos dias, como a possibilidade de ludibriar a opinião dos eleitores com promessas ou de intimidar os eleitores com ameaças. Estava convencido de que era impossível iludir ou intimidar a maioria.
As reflexões de Marsílio mostram que certas frases que circulam em nosso meio sobre a legitimidade conferida pelo voto popular não podem ser citadas como se fossem criações recentes. Dizer que o “Governo mais legítimo e democrático (ou a Câmara, ou o Poder Legislativo, etc.) é o que o povo elege”, é praticamente uma paráfrase de Marsílio de Pádua, pensador que escreveu sua obra prima há quase 700 anos atrás. Para Marsílio, o eleito pelo voto popular é também o melhor. Seria prova de extrema presunção alguém pretender que seu julgamento individual fosse mais sábio do que aquele feito pelo conjunto dos cidadãos. Assim, dizer que o povo nem sempre escolhe o melhor governante (ou Câmara, ou Poder Legislativo, etc.) é sinal de soberba.
A reflexão de Marsílio sobre a legitimidade da eleição comprova que o pensamento político é uma lenta maturação em que a originalidade não está em dizer coisas inéditas, mas em dizê-las de modo novo em cada circunstância concreta.
*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.