José Luiz Ames
O conflito entre Igreja e Estado conheceu durante a Idade Média o seu período mais agudo. Havia uma tradição firmada pela Igreja que atribuía ao Papa a prerrogativa da plenitude do poder. Quer dizer, o Papa era a autoridade suprema tanto em questões civis quanto religiosas. Príncipes e Imperadores, comunidades e indivíduos, todos deviam obediência ao Pontífice romano. Este privilégio causou intermináveis disputas pelo poder protagonizadas pelos Papas e Bispos de um lado e pelos Imperadores e Príncipes de outro. Os primeiros utilizavam-se das “armas espirituais” da excomunhão e dos interditos e os últimos das “armas temporais” dos soldados e das guerras.
Marsílio de Pádua, em plena Idade Média, combateu severamente a pretensão papal à plenitude do poder. Ele percebeu claramente que ali estava a causa do caos que reinava na Europa. Sustentava que o exercício do poder pelo Papa era “uma peste terrivelmente contagiosa e nociva ao ser humano”, porque transformava o cristão num cidadão de dois mundos: o temporal e o espiritual. Somente suprimindo esta divisão a “paz e a tranqüilidade” poderiam ser restauradas.
Por que o exercício do poder pelo Papa era ilegítimo? Na opinião do italiano da cidade de Pádua, isso se devia à missão conferida por Cristo à Igreja: “ensinar o Evangelho e mostrar o que se deve acreditar, fazer e evitar a fim de alcançar a bem-aventurança no outro mundo e fugir à condenação eterna”. Esta missão, na sua opinião, era incompatível com o exercício de qualquer forma de poder.
O poder, entendia Marsílio, só é real quando aquele que o exerce é capaz de coagir, de obrigar à obediência. A missão da Igreja, no seguimento de Cristo, era de ensinar e aconselhar. Por isso, quando ela se arrogava o direito de obrigar os homens a seguirem determinado comportamento, estava usurpando indevidamente uma autoridade que era dos Imperadores e Príncipes. O Papa, os Bispos e o clero em geral eram cidadãos como todos os outros. Por esse motivo, deveriam submeter-se à autoridade civil como todos os demais. Não poderiam ter privilégios, tais como isenções de impostos ou um foro especial para serem julgados. A Igreja, como instituição, deveria estar submetida ao poder do Estado assim como todas as demais instituições que existem na sociedade. Para Marsílio era inconcebível que ela se apresentasse como detentora de um poder próprio capaz de rivalizar com o poder do Estado.
A novidade das lições de Marsílio de Pádua está na sua percepção da causa dos conflitos que dilaceravam a sociedade medieval. Ele percebeu claramente que as intermináveis “guerras de religião” eram motivadas pela sede de poder de uma instituição, a Igreja, que não tinha direito a isso. Era preciso reduzir o Papa ao seu verdadeiro tamanho e a Igreja à sua missão específica: o Papa era Bispo de Roma e a Igreja estava encarregada da missão de orientar os fiéis para que alcançassem a vida eterna.
O melhor do pensamento desse italiano de Pádua é o fato de defender já na Idade Média que o único poder legítimo vem do povo. Imperadores, Príncipes, Bispos e Papas exercem a autoridade que lhes foi delegada pelo povo. Por eles mesmos não possuem qualquer poder a mais do que qualquer cidadão. Não estão acima da lei, mas devem obedecê-la como todos os demais. Oxalá nossos governantes e poderosos de hoje ouvissem essa voz!
*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.
Um comentário
Muito boa essa respostaa!! Valleu..
(:
by Emerson on 20 de outubro de 2009 às 13:40. #