Marsilio: o conflito entre Igreja e Estado

by Francisco on sábado, 29 de maio de 2004

José Luiz Ames

O conflito entre Igreja e Estado conheceu durante a Idade Média o seu período mais agudo. Havia uma tradição firmada pela Igreja que atribuía ao Papa a prerrogativa da plenitude do poder. Quer dizer, o Papa era a autoridade suprema tanto em questões civis quanto religiosas. Príncipes e Imperadores, comunidades e indivíduos, todos deviam obediência ao Pontífice romano. Este privilégio causou intermináveis disputas pelo poder protagonizadas pelos Papas e Bispos de um lado e pelos Imperadores e Príncipes de outro. Os primeiros utilizavam-se das “armas espirituais” da excomunhão e dos interditos e os últimos das “armas temporais” dos soldados e das guerras.

Marsílio de Pádua, em plena Idade Média, combateu severamente a pretensão papal à plenitude do poder. Ele percebeu claramente que ali estava a causa do caos que reinava na Europa. Sustentava que o exercício do poder pelo Papa era “uma peste terrivelmente contagiosa e nociva ao ser humano”, porque transformava o cristão num cidadão de dois mundos: o temporal e o espiritual. Somente suprimindo esta divisão a “paz e a tranqüilidade” poderiam ser restauradas.

Por que o exercício do poder pelo Papa era ilegítimo? Na opinião do italiano da cidade de Pádua, isso se devia à missão conferida por Cristo à Igreja: “ensinar o Evangelho e mostrar o que se deve acreditar, fazer e evitar a fim de alcançar a bem-aventurança no outro mundo e fugir à condenação eterna”. Esta missão, na sua opinião, era incompatível com o exercício de qualquer forma de poder.

O poder, entendia Marsílio, só é real quando aquele que o exerce é capaz de coagir, de obrigar à obediência. A missão da Igreja, no seguimento de Cristo, era de ensinar e aconselhar. Por isso, quando ela se arrogava o direito de obrigar os homens a seguirem determinado comportamento, estava usurpando indevidamente uma autoridade que era dos Imperadores e Príncipes. O Papa, os Bispos e o clero em geral eram cidadãos como todos os outros. Por esse motivo, deveriam submeter-se à autoridade civil como todos os demais. Não poderiam ter privilégios, tais como isenções de impostos ou um foro especial para serem julgados. A Igreja, como instituição, deveria estar submetida ao poder do Estado assim como todas as demais instituições que existem na sociedade. Para Marsílio era inconcebível que ela se apresentasse como detentora de um poder próprio capaz de rivalizar com o poder do Estado.

A novidade das lições de Marsílio de Pádua está na sua percepção da causa dos conflitos que dilaceravam a sociedade medieval. Ele percebeu claramente que as intermináveis “guerras de religião” eram motivadas pela sede de poder de uma instituição, a Igreja, que não tinha direito a isso. Era preciso reduzir o Papa ao seu verdadeiro tamanho e a Igreja à sua missão específica: o Papa era Bispo de Roma e a Igreja estava encarregada da missão de orientar os fiéis para que alcançassem a vida eterna.

O melhor do pensamento desse italiano de Pádua é o fato de defender já na Idade Média que o único poder legítimo vem do povo. Imperadores, Príncipes, Bispos e Papas exercem a autoridade que lhes foi delegada pelo povo. Por eles mesmos não possuem qualquer poder a mais do que qualquer cidadão. Não estão acima da lei, mas devem obedecê-la como todos os demais. Oxalá nossos governantes e poderosos de hoje ouvissem essa voz!

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Marsilio: o melhor governante é o eleito pelo povo

by Francisco on quarta-feira, 19 de maio de 2004

José Luiz Ames

Durante a Idade Média, a forma de organização política típica é a do Reino. Um Reino é governado por um monarca. Era incontestável que a sucessão hereditária era a maneira mais legítima de continuidade do poder político. Fundado nesse direito, constituíam-se as dinastias: famílias que detinham de forma vitalícia o privilégio de dirigir o Reino.

Marsílio de Pádua contesta frontalmente essa tradição. Enfrenta os defensores da monarquia hereditária, examina os argumentos que estes apresentam e os refuta um a um. Diziam os defensores da monarquia hereditária que o rei com direito à sucessão “zelaria com muito mais empenho pela coisa pública, considerando-a como sua propriedade”. Diziam ainda que o monarca hereditário estaria menos sujeito a governar despoticamente; que estaria mais propenso à prática das virtudes; que a ausência de eleições evitaria despertar nos súditos a ambição pelo poder; etc.

Marsílio rebate dizendo que o zelo da coisa pública é garantido pela escolha de um governante justo e capaz e pela lei aprovada pela coletividade. Somente a eleição garante que o povo será governado pelo melhor dos cidadãos. Marsílio estava convencido de que o povo escolheria seu soberano a partir das virtudes que ele apresenta. Ele inclusive relaciona quatro qualidades imprescindíveis a um candidato a governante: prudência, justiça, eqüidade e zelo pelo bem geral dos cidadãos. Quanto ao risco de governar despoticamente, Marsílio argumenta que isso é fruto da impunidade. Governa despoticamente quem considera estar acima da lei. Enfim, quanto ao argumento de que as eleições despertariam no peito das pessoas a ambição pelo poder, Marsílio responde que, pelo contrário, desperta nos homens o desejo de serem virtuosos. Sabendo que as pessoas querem ser governadas por indivíduos justos e capazes, cada um se esforçará por ser melhor de modo a um dia poder ser candidato. Assim, as eleições são também um instrumento para melhorar a qualidade moral dos indivíduos.

Com estas considerações Marsílio revela toda sua atualidade. Em plena Idade Média já percebeu que o melhor instrumento para escolha daqueles que devem dirigir a vida pública é a eleição. Ele não estava cego para problemas que conhecemos muito bem em nossos dias, como a possibilidade de ludibriar a opinião dos eleitores com promessas ou de intimidar os eleitores com ameaças. Estava convencido de que era impossível iludir ou intimidar a maioria.

As reflexões de Marsílio mostram que certas frases que circulam em nosso meio sobre a legitimidade conferida pelo voto popular não podem ser citadas como se fossem criações recentes. Dizer que o “Governo mais legítimo e democrático (ou a Câmara, ou o Poder Legislativo, etc.) é o que o povo elege”, é praticamente uma paráfrase de Marsílio de Pádua, pensador que escreveu sua obra prima há quase 700 anos atrás. Para Marsílio, o eleito pelo voto popular é também o melhor. Seria prova de extrema presunção alguém pretender que seu julgamento individual fosse mais sábio do que aquele feito pelo conjunto dos cidadãos. Assim, dizer que o povo nem sempre escolhe o melhor governante (ou Câmara, ou Poder Legislativo, etc.) é sinal de soberba.

A reflexão de Marsílio sobre a legitimidade da eleição comprova que o pensamento político é uma lenta maturação em que a originalidade não está em dizer coisas inéditas, mas em dizê-las de modo novo em cada circunstância concreta.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Marsílio: o que torna um governo legítimo?

by Francisco on terça-feira, 11 de maio de 2004

José Luiz Ames

Na vida política, estamos acostumados à idéia de que existem alguns que mandam (os governantes) e outros que obedecem (os governados). Por que obedecer? O que torna o mando legítimo? A presente lição é extraída das reflexões de um filósofo político medieval: Marsílio de Pádua. Para este filósofo, a fonte originária do poder reside no povo tomado em seu conjunto. A lei é inventada pelos cidadãos. Uma lei que não tenha merecido a aprovação do corpo dos cidadãos é ilegítima.

Marsílio apresenta diversos argumentos para fundamentar essa posição. Primeiro, que o conjunto dos cidadãos é capaz de perceber com mais precisão uma falha na lei do que uma parcela de pessoas, ainda que sejam peritas. Segundo, uma lei aprovada por todos é observada na prática, porque ela não aparece como uma imposição externa. Terceiro, uma lei nascida da vontade do conjunto dos cidadãos necessariamente expressa o que interessa a todos, porque ninguém se prejudica conscientemente.

A exigência da participação do conjunto dos cidadãos para a formulação da lei aponta para a sua origem humana. Essa posição é frontalmente contrária à concepção medieval, que atribuía a origem da lei a Deus ou à natureza. Além disso, ao cobrar a participação da totalidade dos cidadãos, mostra a necessidade do consenso para dar obrigatoriedade à lei. Marsílio torna-se assim o primeiro a defender em plena Idade Média a discussão pública valorizando a voz do povo na formação da comunidade política.

A esta lei todos, sem distinção, estão submetidos de maneira igual. Não há privilégios nem aos ricos, nem ao clero. Os próprios governantes estão submetidos à lei, podendo ser depostos pelo povo sempre que comprovadamente a descumprirem. Assim, o problema de saber o que torna legítimo o mando fica respondido: é o governo segundo a vontade soberana do povo. O povo não obedece a um poder estranho e oposto a ele, mas a si mesmo. O governante é aquela pessoa encarregada pelo povo para aplicar a lei. Seu poder tem a exata dimensão daquilo que o povo lhe confere. Não lhe cabe fazer promessas, nem inventar regras segundo sua conveniência.

A contribuição de Marsílio para nossa vida política atual está em mostrar a necessidade de buscar o consentimento do conjunto dos cidadãos para dar legitimidade às ações políticas. Marsílio recomendaria a resistência cívica às leis impostas contra a vontade da população. Para ele era claro que justo é tudo o que está de acordo com a vontade da maioria, injusto o que violenta o interesse geral. Nossas orgulhosas instituições democráticas atuais em muito melhorariam se aprendêssemos essa lição desse pensador político medieval.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Marsílio de Pádua: um democrata medieval

by Francisco on quarta-feira, 5 de maio de 2004

José Luiz Ames

A Idade Média é conhecida como o período das trevas. O cinema e a literatura, especialmente, são responsáveis por esta idéia. No imaginário das pessoas, este período foi dominado pela intolerância e superstição patrocinadas pela Igreja. Pouca, ou nenhuma, contribuição esta época teria fornecido à humanidade. Tão logo, porém, nos dedicamos à leitura dos grandes pensadores desta etapa da história humana, esta imagem se transforma. Notamos que não é possível fazer uma ponte entre o pensamento grego e moderno sem passar pelos medievais. É imprescindível abrir caminho pela Idade Média, porque ali, mais do que entre os antigos, foram gestadas as raízes da nossa cultura atual.

Na Filosofia Política medieval destacou-se, além de Tomás de Aquino, outro grande intelectual: o italiano Marsílio de Pádua. Nascido em torno de 1285, jamais pertenceu aos quadros da hierarquia da Igreja. Estudou Direito, Filosofia e Medicina. Aos 27 anos foi reitor da Universidade de Paris. Durante os anos em que passou na França, escreveu sua obra-prima: “O Defensor da Paz”, concluída em 1324. Três anos depois, foi convocado a apresentar-se diante da Cúria Romana para esclarecer as posições defendidas nesta obra. Temendo represálias, refugiou-se na corte do príncipe alemão Luís da Baviera.

Este príncipe alemão havia sido eleito Imperador em 1314. A tradição determinava que o Arcebispo de Colônia, representando o Papa, ungisse e coroasse o eleito, o que acabou não ocorrendo. Após a eleição do novo Pontífice romano, João XXII, em 1316, o bávaro apelou à Sua Santidade para solucionar o conflito. O Papa, porém, declarou vago e trono e avocou a si a administração do Império. Luís da Baviera resolveu, então, usar da força e invadiu a Itália. O Papa, por sua vez, decidiu usar das armas da doutrina e excomungou o príncipe. Durante estes acontecimentos Marsílio já estava junto à corte do nobre alemão. Uma vez conquistada Roma, o príncipe alemão, orientado por Marsílio, destituiu o Papa, ordenou a escolha de um antipapa pelo povo romano e fez-se coroar Imperador. Pouco mais de meio ano depois, porém, foi expulso da cidade e obrigado a retornar à Alemanha. O Papa João XXII voltou à cidade, excomungou Marsílio e proibiu a leitura de sua obra.

Marsílio permaneceu na corte do príncipe alemão até sua morte, ocorrida provavelmente em 1343. Os conflitos que envolveram a Igreja e o nobre alemão influenciaram o modo como esse grande intelectual italiano propôs sua solução ao clássico problema medieval da relação entre poder espiritual, representado pelo Papa, e poder temporal, representado pelo Imperador.

Nas próximas reflexões vamos mostrar que Marsílio defendeu vigorosamente a soberania do povo. O único poder legítimo, de qualquer natureza, pertence ao conjunto da população e a ninguém mais. Essa compreensão tornava ilegítima a pretensão do Papa tanto ao exercício do poder temporal, quanto espiritual. Nestas análises nos guiaremos pela obra mais importante de Marsílio de Pádua: “O Defensor da Paz”.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.