Hegel e seu conceito de sociedade civil

by Francisco on terça-feira, 26 de abril de 2011

por Francisco Antônio de Andrade Filho



Ainda que possam encontrar sensíveis diferenças e até oposições entre autores como Hobbes, Locke, Kant, Rousseau, inclusive o próprio Hegel, todos eles, ao procurarem explicar o surgimento da sociedade atual, partem da mesma dicotomia: estado de natureza versus estado de sociedade. Para eles, em geral, a origem do Estado e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam naturalmente, sem poder e sem organização que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras do convívio social e de subordinação política.

No modelo jusnaturalista e de toda uma tradição justificadora do poder, o Estado é a antítese do estado de natureza3 da “societas naturalis” constituída por indivíduos hipoteticamente livres e iguais. O homem encontrava-se numa situação primitiva, regido unicamente por leis naturais, sem autoridade, sem governo e sem outras normas que aquelas ditadas pela satisfação das necessidades imediatas.

No entanto, surgem inúmeros conflitos que ameaçavam a paz, a segurança, a liberdade e a propriedade dos indivíduos que viviam nesse estado, tornaram imperioso o estabelecimento de um pacto pelo qual, alienando cada um a sua liberdade irrestrita, criava-se um conjunto de instrumentos capazes de impedir a guerra generalizada, e garantir de forma mais adequada os interesses de cada um. Surgia assim o Estado, com seu aparato jurídico, político e administrativo, oriundo do consenso dos indivíduos e com a finalidade bem definida de assegurar o livre exercício dos direitos naturais desses mesmos indivíduos.

Assim, por exemplo, o estado de natureza, segundo Hobbes, é a guerra de todos contra todos, uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. E mais, pensa Hobbes, assim:



“Toda sociedade civil é exatamente esta guerra (do homem contra os homens), um contra o outro, de todos os indivíduos, agora isolados um do outro apenas pela sua individualidade, e é o movimento geral, desenfreado, das potências elementares da vida livre das cadeias de privilégios”.




Deste modo, passavam os homens, do estado de natureza para o estado da sociedade. Não importa aqui o fato de que cada autor interpreta de forma diferente tanto o estado de natureza, quanto as etapas de constituição e o sentido positivo ou negativo do estado de sociedade. Importa o reconhecimento de que, como diz Kant:



“o homem deve sair do estado de natureza, no qual cada um segue os caprichos da própria fantasia, para unir-se com todos os outros... e submeter-se a uma pressão externa publicamente legal...,quer dizer, que cada um deve, antes de qualquer outra coisa, entrar num estado civil.”



Sociedade civil, portanto, aqui se opõe a sociedade natural, recobrindo tanto o conteúdo da sociedade política, isto é, um estado regido por normas às quais todos se submetem voluntariamente e no qual existem determinadas instituições encarregadas de velar pelo seu cumprimento.

Com Hegel o conceito de sociedade civil sofre uma grande modificação. Segundo ele, equivocam-se os jusnaturalistas ao verem no Estado o resultado do consenso dos indivíduos. Pelo contrário, o Estado é o momento superior de racionalidade, que se impõe mesmo contra a vontade dos indivíduos, porque só ele pode fazer ascender a massa informe e anárquica da sociedade civil a um nível superior de existência que é a sociedade política, ou Estado.

Para Hegel, a sociedade civil (Bürgerlíche Gessollchfat) é o momento que sucede à família como lugar de satisfação das necessidades. Da dissolução da unidade familiar surgem as classes sociais e a multiplicidade de oposições entre diferentes grupos, todos eles tendo por base os interesses econômicos. Na medida em que cada um desses grupos tem por objetivo principal a defesa dos seus interesses, a tendência é estabelecer-se uma anarquia generalizada, um bellum omnium contra omnes, que põe em perigo a própria sobrevivência da sociedade. A necessidade do Estado como princípio superior de ordenamento racional põe-se exatamente porque a sociedade civil, por si mesma, não tem condições de superar este estado de anarquia. Observa Marcuse:



“... a sociedade civil se integra com o Estado. Hegel discute a forma política desta sociedade sob a tutela da ‘Constituição’. A lei (gelsetz) transforma a totalidade cega das relações de troca na máquina conscientemente regulada pelo estado...”.



O Estado representa, pois, um momento superior da existência social - ...a totalidade desenvolvida em si desta conexão é o Estado, como sociedade civil, ou como Estado externo – uma que nele o interesse geral prevalece sobre os interesses particulares. O Estado é a substância ética consciente de si, a reunião do princípio da família e da sociedade civil. Esta é a tese básica de Hegel: não é a sociedade civil que funda o Estado, mas é o Estado que funda a sociedade civil, porém agora como a sociedade política regida pelo princípio da universalidade.

Hegel concebe o Estado como fim-imanente e coloca a sociedade, numa relação de subordinação e dependência em relação a ele. A sociedade civil e a família aparecem, em Hegel, como fundo natural em que se ascende a luz do Estado, um Estado como totalidade ideal, infinito, auto-suficiente; enquanto isso, a sociedade civil aparece como a finitude do Estado, não como finitude real a ser mediada, mas como finitude da idéia, ideell, em oposição ao momento da objetividade, des objekts, presente no Estado. Como reino da necessidade e do entendimento, na sociedade civil, os indivíduos acreditam realizar sua liberdade individual e subjetiva; trabalham, trocam, celebram contratos, mas de tal maneira que supõem trabalhar, produzir e trocar por conta própria, como se a vontade individual fosse a vontade racional em si e por si.

Esse conceito de sociedade civil em Hegel, momento de formação do Estado, vai ser invertido na interpretação de Marx, onde a sociedade civil passa a significar o conjunto das relações inter-individuais que estão fora ou antes do Estado, e ainda, como o conjunto das relações econômicas constitutivas de base material. É o que tentaremos fazer a seguir, confrontando Marx com Hegel.

Notas:

1. HOBBES, Leviatã, cap. XIII, 74 p.
2. Ibidem, p.76.
3. Recomenda-se a leitura de MARCUSE, H. Op. cit. 1a Parte Os fundamentos da filosofia de Hegel. 17-228, p.
4. Tentamos aqui nos aproximar do termo “conceito” no sentido hegeliano, como natureza ou essência do objeto em questão e sua realização efetiva na existência concreta. O conceito, então, representa, na visão de Hegel, a forma real do objeto, pois o concreto nos revela a verdade sobre o processo que, no mundo objetivo, é cego e contingente. N‘A Ciência da Lógica, Hegel designa o conceito como a unidade do universal e do particular, e como o reino da subjetividade e da liberdade.
5. Sugere-se a leitura de MARCUSE, H. Estudo sobre a autoridade e a família, in Idéias sobre uma Teoria crítica da sociedade, tradução de Fausto Guimarães, Rio: Zahar,1972. 99-114 p.
6. MARCUSE, H. Razão e ...85 p. Grifos meus.
7. Tentamos aqui nos aproximar do termo “conceito” no sentido hegeliano, como natureza ou essência do objeto em questão e sua realização efetiva na existência concreta. O conceito, então, representa, na visão de Hegel, a forma real do objeto, pois o concreto nos revela a verdade sobre o processo que, no mundo objetivo, é cego e contingente. N‘A Ciência da Lógica, Hegel designa o conceito como a unidade do universal e do particular, e como o reino da subjetividade e da liberdade.
8. Sugere-se a leitura de MARCUSE, H. Estudo sobre a autoridade e a família, in Idéias sobre uma Teoria crítica da sociedade, tradução de Fausto Guimarães, Rio: Zahar,1972. 99-114 p.
9. MARCUSE, H. Razão e ...85 p. Grifos meus.

Referências Bibliográficas

BOBBIO, N. O Conceito de Sociedade Civil, Rio: Graal, s/d
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade – para uma teoria geral da política. 2a edição. Rio: Paz e Terra, 1987, 39-52 p
BOBBIO, N. Dicionário de Política, 2a edição. Brasília: UnB, 1986.
CHASIN, J. Democracia Política e Emancipação Humana in Ensaio, no 13, São Paulo: Ensaio, 1984.
LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social – a falsa e a verdadeira ontologia de Hegel. São Paulo: Livraria de Ciências Humanas, 1979.
MARCUSE, H. Razão e Revolução, tradução de Marília Barroso. 2ª edição, Rio: Paz e Terra, 1978
MARX, K. e ENGELS. Obras Escolhidas , tradução de Álvaro Pina. Lisboa: Edições Avante, 1982. vol. I, 530 p.
MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d. 28 p.MARX, K. A Ideologia alemã, 4a edição. São Paulo: HUCITEC, 1984.

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