Maquiavel: uma Religião Corrupta Corrompe a Sociedade
by Francisco on quarta-feira, 6 de outubro de 2010
por José Luiz Ames*
Maquiavel constata a intrínseca relação entre religião e política. A história dos grandes Estados mostra que a fé religiosa foi fundamental para incutir os bons costumes, o devotamento ao bem comum e à pátria, o cumprimento das leis e o respeito sagrado às autoridades, a coragem dos soldados e a fidelidade dos cidadãos. Na avaliação de Maquiavel, é tarefa dos dirigentes políticos zelar pela pureza e sinceridade da crença religiosa: “se os Estados quiserem manter-se incorruptos devem manter incorruptas as cerimônias de sua religião e ter esta sempre em grande veneração” (Discursos Livro I, cap. 12).
A Itália no tempo de Maquiavel conhece o domínio absoluto da Igreja Católica. Ele a acusa de culpada pelo atraso e divisão do país. Na sua avaliação, o povo italiano perdeu os valores religiosos dos antigos romanos. Isso explica sua apatia em relação à grandeza do Estado e a ausência do amor pátrio. O cristianismo, diversamente do que as antigas religiões romanas, parece inspirar aos homens o desprezo por este mundo e o desejo da glória celeste. Cultivou nos homens uma dupla cidadania: sentem-se cidadãos deste mundo e de um outro que os aguarda depois da morte. As antigas religiões romanas, afirma Maquiavel, “estimavam as honras mundanas e tinham-nas como sumo bem” (Discursos Livro II, cap. 2). Além disso, continua, “a religião antiga só beatificava os homens cheios de glória mundana, como os chefes militares e de Estados. A religião cristã, ao invés disso glorifica os homens humildes e contemplativos. Além disso, enquanto o cristianismo colocou o sumo bem na humildade e desprezo das coisas humanas, as religiões romanas o colocavam na grandeza de espírito e na fortaleza corporal” (Discursos Livro II, cap. 2).
Maquiavel parece denunciar uma incompatibilidade essencial entre a fé cristã e a finalidade da vida política. Na medida em que os cristãos se sentem cidadãos de dois mundos, o terreno e o celeste, e sacrificam o primeiro em favor do segundo, o cristianismo se mostra incapaz de servir à construção de uma vida humana boa na terra. Por isso Maquiavel critica impiedosamente o cristianismo: “quando a religião cristã nos exige que sejamos fortes é para suportar os males, não para enfrentá-los. Parece que esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados, pois estão dispostos a suportar todos os ultrajes na esperança de conquistar o paraíso” (Discursos Livro II, cap. 2).
Podemos compreender a severidade do julgamento de Maquiavel a partir do contexto renascentista em que viveu. Uma Igreja corrompida, cujas cabeças estavam voltadas para o conforto mundano e que haviam voltado as costas para a miséria do povo e a cobiça dos grandes. A veracidade de seu diagnóstico se confirmou com a Reforma protestante: foi justamente o quadro de corrupção moral denunciado por Maquiavel o mesmo alegado pelos reformadores.
Difícil é concordar com a idéia do florentino de que há uma incompatibilidade essencial entre cristianismo e vida política. Apesar do esforço do papa João Paulo II em combater a politização da religião (a condenação da Teologia da Libertação é um exemplo), é inegável a força transformadora inerente à religião cristã. Não houve nenhum movimento social na história do Brasil em que religião não tenha sido a força mobilizadora principal. O mais visível dos movimentos sociais atuais, o MST, tem na fé cristã sua inspiração e é também ela que oferece a base da coesão do grupo.
Observamos em nosso meio que a religião cristã permanece cheia de vitalidade, apesar da exploração privada que muitos membros de sua hierarquia fazem dela nos processos político-eleitorais. Parece que o homem de hoje não espera gozar uma vida boa somente no Paraíso, como pensava Maquiavel. A fé cristã mobiliza muitos num processo de construção de um mundo terreno melhor para se viver. E nesse processo nem sempre interpreta a fé no mesmo sentido que a hierarquia da Igreja. Talvez por isso seja revolucionária. A religião limitada à ortodoxia oficial é estéril politicamente. Produz conchavos, mas não transformações sociais.
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* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste, campus de Toledo.