Aristóteles: o que é um governo justo?

by Francisco on sábado, 27 de março de 2004

José Luiz Ames

“O homem é por natureza um animal político”. Essa idéia fundamental de Aristóteles ensina que o homem realiza sua essência, isto é, atinge sua finalidade última, somente na comunidade política. A finalidade da existência desta é possibilitar a realização da felicidade de seus membros. O que faz com que o poder exercido nesta comunidade seja “político” é o fato de visar o bem de todos. E quando ele visa apenas o bem de alguns, podemos chamar este poder de “político”?

Para saber se um governo é justo, é preciso responder a duas perguntas: “quem governa?” e “para quem se governa?”. A primeira resolve o problema de saber quantos são os governantes: pode ser um só (Monarquia ou Tirania), alguns (Aristocracia ou Oligarquia) ou a maioria (Regime Popular ou Democracia). A segunda pergunta nos responde a questão de saber a favor de quem é exercido o poder e, dessa maneira, se ele é justo ou injusto: é justo o governo que tem em vista o interesse geral, pouco importa se o poder é exercido por um só (Monarquia), por alguns (Aristocracia), ou pela maioria (Regime Popular). Resulta claro que Tirania, Oligarquia e Democracia são formas injustas de governo.

Notamos que Aristóteles não se interessa pela questão de saber qual é a melhor forma governo, nem mesmo qual a mais justa. Como, então, escolher entre Monarquia, Aristocracia e Regime Popular? A opção não pode levar em conta saber em qual destas formas o poder é repartido de modo mais justo, pois todos os regimes que visam o bem comum são justos. O que podemos é perguntar qual tipo de governo é mais capaz de tomar as melhores decisões em favor do Estado. Neste caso, a resposta recai sobre o Regime Popular: em geral, o conjunto do povo decide melhor do que um só ou do que alguns, ainda que estes sejam os mais preparados.

Embora Aristóteles se decida pelo Regime Popular (que ele chama de “Regime Constitucional”), recrimina os democratas. Para estes, é melhor que o povo governe enquanto que, para Aristóteles, o povo governa melhor. Qual a diferença nestas duas posições? De acordo com os democratas, o povo deve governar porque ele é a maioria e não seria justo que alguns poucos comandassem. Já de acordo com a segunda posição, o que torna o governo legítimo não é o fato de ser exercido pela maioria como pensam os democratas e sim porque é exercido a favor de todos. Neste sentido, o povo governa melhor: ao permitir a manifestação da multiplicidade dos pontos de vista, da opinião de todos, o Regime Popular possibilita que as deliberações e os julgamentos sejam mais completos. Este é um governo justo.

Aristóteles permite desmascarar algumas idéias fortemente enraizadas no pensamento político atual. Por exemplo, de que um governo é justo só porque as decisões são tomadas pela maioria. A maioria também pode ser excludente: 51% é maioria, mas não é justo que governe contra os interesses dos 49% restantes. Num governo justo não existem excluídos. Uma outra idéia que Aristóteles desmascara é de que, por ser algo muito complexo, a vida política é um negócio para especialistas. Por isso as pessoas acham que aquele que se deu bem no seu negócio privado está também preparado para ser um bom governante. Aristóteles ensina que é absurda a opinião de que existem alguns que sabem e devem mandar e outros que não sabem e devem obedecer. Quem sabe se a pizza é boa ou não é quem a faz ou quem a come? Na política também é assim: todos somos “consumidores” da vida política, porque ela diz respeito a tudo o que é público. Por isso, cabe a todos nós opinar sobre ela e dizer se ela presta ou não, se ela é justa ou injusta.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Aristóteles: o que é um governo democrático?

by Francisco on segunda-feira, 22 de março de 2004

José Luiz Ames

A idéia que fazemos de democracia é bem diferente do que aquilo que se entendia por ela nas suas origens gregas. Na atualidade, entendemos por democracia uma forma de governo na qual o povo escolhe periodicamente seus dirigentes e representantes e na qual todos são livres para pensar e agir segundo seu arbítrio.

Para Aristóteles o termo tem uma significação bem diferente. Democracia é o regime da soberania popular. Quer dizer, é uma forma de governo na qual os cidadãos exercem pessoalmente o poder legislativo e judiciário. Aristóteles era do entendimento de que nestas questões era imprescindível a multiplicidade dos pontos de vista, pois o objeto sobre o qual se delibera em política não é algo que possa ser conhecido de modo absolutamente seguro. Somente é possível ter uma “opinião”, isto é, um ponto de vista. A Assembléia do povo, uma vez que é constituída por um mosaico de opiniões contraditórias, é o espaço mais adequado à deliberação, uma vez que supõe a palavra pública e a contradição. Conseqüentemente, as deliberações e julgamentos coletivos são mais completos, pois focalizam as coisas de um maior número de pontos de vista.

Em relação a esta compreensão, Aristóteles refutou uma objeção que freqüentemente ouvimos até hoje. Poderíamos chamá-la de “tecnocrática”: a posição daqueles que defendem que legislar e julgar devem ser tarefas para peritos, de especialistas na área. Deixar que qualquer cidadão se ocupasse destas tarefas seria a mesma coisa do que permitir que um leigo tratasse da doença em vez do médico. Aristóteles rebate o argumento dizendo que a política não é uma arte como a medicina, onde deve reinar a competência. Antes, é uma arte como a arquitetura ou a culinária, nas quais prevalece o ponto de vista do usuário: ele é quem decide se a casa é confortável ou a comida é saborosa.

A análise de Aristóteles mostra claramente que a democracia atual expropriou o povo dos seus direitos políticos. “Fazer política” se tornou em nossos dias uma tarefa para especialistas, os “políticos”, que fazem isso “profissionalmente” a ponto de até poderem receber uma “aposentadoria” vitalícia ao termo de um certo número de mandatos! A queixa que ouvimos freqüentemente, de que as pessoas não se interessam por política, deve ser vista como uma conseqüência desse processo histórico de exclusão do povo do espaço da decisão pública. É uma afronta cobrar participação sem conferir a mínima importância à decisão das pessoas. Só há “participação” quando aquele que participa tem o poder de mudar as coisas. Fora disso é puro envolvimento: populismo barato para legitimar as decisões dos “políticos profissionais”.

A lição que Aristóteles nos oferece mostra que uma forma de governo na qual as pessoas limitam sua atividade política à escolha daqueles que tomarão as decisões em nome da coletividade só pode ser um arremedo de democracia. Não opinar, não se envolver, deixar que uma elite de pretensos especialistas (os “políticos”) decidam tudo por nós é contribuir para que prevaleçam os interesses mesquinhos e particularistas na política. Segundo a bela comparação de Aristóteles, na política como na arquitetura cabe aos usuários dizer se gostam ou não daquilo que é oferecido. Na eleição, julgamos nossos representantes. Podemos mais: decidir quem é digno destes postos. Sobretudo, deveríamos fazer como os gregos: discutir publicamente, deliberar e decidir coletivamente nosso destino, destituindo de seus postos aqueles que se mostram indignos no exercício de seus cargos.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE/Campus de Toledo.

Aristóteles: os partidos e o governo do Estado

by Francisco on quinta-feira, 18 de março de 2004

José Luiz Ames

Para Aristóteles, somente é cidadão aquele que participa efetivamente da administração do Estado. O melhor administrador dos poderes do Estado é o povo no seu conjunto. A lição que nos ocupa aqui é entender o argumento de Aristóteles contra as pretensões universalistas dos “partidos”, isto é, os grupos que disputam o poder no Estado.

Antes de qualquer coisa, é preciso observar que, no tempo de Aristóteles, não existiam partidos políticos na forma como os conhecemos hoje. Na Grécia daquele tempo existiam “facções” ou “grupos” que se comportavam de modo semelhante aos modernos partidos políticos. Por isso, parece adequado designá-los pelo mesmo nome.

Os “partidos”, diz Aristóteles, fundamentam sua reivindicação de exercerem o poder do Estado no princípio da justiça distributiva. Este princípio diz o seguinte: cada um deve receber proporcionalmente àquilo a que tem direito segundo a qualidade que lhe é própria. O problema todo, como é fácil notar, é pôr-se de acordo sobre essa “qualidade”. Por exemplo, na eleição para Reitor numa Universidade pública, os alunos poderiam argumentar que a “qualidade” comum a todos é o fato de todos serem igualmente membros da comunidade acadêmica. Logo, o voto de cada membro deve ter o mesmo peso. Os professores, por outro lado, poderiam argumentar que eles são responsáveis pelos fins (ensino, pesquisa e extensão) da Universidade. Logo o voto deles deve valer mais do que o dos outros.

No Estado, os diferentes partidos raciocinam de modo semelhante. Cada um deles pensa que a qualidade da qual se acha possuidor é a única da qual a coletividade necessita para alcançar o bem estar de todos. Sob o ponto de vista dos fatos, diz Aristóteles, é inegável que cada partido tem credenciais suficientes para exercer o poder soberano no Estado. Sob o ponto de vista do direito, os argumentos de cada um deles são refutáveis. De que maneira?

Aplicando-se o princípio “a cada um segundo o valor de suas qualidades”, temos uma conseqüência que ninguém aceita. Se as qualidades de um partido, seja ele qual for, possuir sozinho mais valor do que o resto da comunidade tomada em seu conjunto, o poder soberano lhe deveria ser entregue por justiça. Neste caso, este partido deveria governar sozinho. Eis o que ninguém aceita.

Aristóteles examina a hipótese de que o partido em questão seja um indivíduo excepcional. Se os defensores dos demais partidos fossem totalmente fiéis ao princípio defendido, deveriam ceder o poder a este único homem. Por quê? Porque o princípio diz: “a cada um segundo o valor de sua qualidade”. Se as qualidades deste único homem fossem superiores à soma das qualidades de todos os demais partidos, então ele deveria governar sozinho!

A lição de Aristóteles é de que nenhum partido tem razão no seu argumento. O Estado não deve ser governado por uma “parte”. A administração da comunidade política é tarefa do conjunto dos cidadãos. Nenhum partido pode pretender substituir a coletividade inteira no exercício do poder. Quando um partido faz isso, exclui aqueles que não pertencem a ele do direito de participarem da administração do Estado. Neste caso, a comunidade deixa de ser “política” para ser “despótica”. Quer dizer, deixa de ser uma forma de exercício dos poderes em vista do bem geral para tornar-se o exercício do poder em favor dos interesses privados. Em que isto poderia ser útil aos nossos partidos de hoje em dia?

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Aristóteles: é melhor que o povo governe ou o povo governa melhor?

by Francisco on segunda-feira, 15 de março de 2004

José Luiz Ames

As duas idéias colocadas no título aparentemente não têm maior diferença entre si. Será que não têm mesmo? A pergunta que Aristóteles se coloca é a seguinte: quem pode exercer de modo mais justo o governo num Estado? Em princípio, os diferentes partidos que existem no Estado pleiteiam esta condição. São eles, então, todos iguais e é indiferente quem exerce o poder soberano no Estado? Aristóteles pensa que não. Ele não tem dúvida de que a política é algo que diz respeito a todos. Logo, cabe ao povo exercer o poder soberano no Estado.

No entanto, cabe ao povo porque é melhor que ele governe, ou porque o povo governa melhor? Quando dizemos que “é melhor que o povo governe” estamos dizendo que apenas um “partido”, a massa, é capaz de realizar um governo justo. Agora, quando dizemos que “o povo governa melhor” estamos defendendo a idéia de que o governo exercido pelo povo resolve com maior eficiência os problemas em favor do interesse de todos. Não é possível, porém, dizer que, por princípio, ele é mais justo do que o governo de qualquer outro partido. Aristóteles fica com a segunda alternativa, porque pensa que o povo, tomado como um conjunto, é superior aos indivíduos, mesmo que estes sejam os melhores.

Por que as deliberações coletivas são melhores do que aquelas dos indivíduos, mesmo que sejam os mais sábios? Acontece que a deliberação feita pelo povo no seu conjunto é a única capaz de ver as coisas de múltiplos pontos de vista. Diante da objeção “tecnocrata”, de que deve decidir aquele que é competente, o especialista, Aristóteles responde: há assuntos, e a política é um deles, que devem ser decididos pelos usuários. Quer dizer, os destinatários da política são os cidadãos no seu conjunto. Somente eles sabem o que é bom ou não para eles. Pensar o contrário seria como afirmar que é o cozinheiro quem deve dizer se a comida é saborosa ou não.

Aristóteles mostra que a superioridade da democracia não está tanto nos motivos práticos, que ele próprio destaca: é o mais estável e equilibrado dos regimes e o único a permitir a alternância real dos cargos entre os cidadãos. Hoje vemos somente estas vantagens. O pensador grego mostra que o principal não está ali. O decisivo é que o povo governa melhor. Somente quando o poder está nas mãos de todos os cidadãos, e não de um grupo, existe um sentimento de amor à comunidade. Somente nesta situação a política é algo que diz respeito “a nós” e não “aos outros”, os políticos profissionais.

Se levássemos a sério esta reflexão de Aristóteles, acabaria a picaretagem política. Hoje prevalece a idéia de que bom político é aquele que realiza os interesses dos grupos dos quais se diz representante. Se o Estado tivesse estruturas que possibilitassem a participação efetiva da coletividade, estes pretensos representantes perderiam sua importância em favor do sujeito principal da política, o cidadão.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Aristóteles: o homem bom e o bom cidadão

by Francisco on sábado, 13 de março de 2004

José Luiz Ames

Aristóteles pergunta-se se as qualidades de um homem bom são as mesmas ou não do que as de um bom cidadão. No fundo, é a discussão de um tema que em linguagem moderna chamamos de “ética e política”. Devido à atualidade da questão, convém um breve exame do problema no pensamento de Aristóteles.

Para o pensador grego, é preciso responder a duas questões: do que depende ser um bom cidadão e o do que depende ser um homem bom. Comecemos pela primeira. Para Aristóteles, somente é cidadão quem exerce poder na administração do Estado. Assim sendo, ser um bom cidadão ou não depende do tipo de governo. Para Aristóteles estava claro que era impossível ser bom cidadão num governo injusto. É preciso lembrar que governo injusto é aquele no qual o poder é exercido em favor dos interesses privados daqueles que ocupam o mando no Estado. Nesta situação, somente um ou alguns exercem alguma função pública. Por isso, é impossível ser cidadão num regime injusto.

Do que depende ser um “homem bom”? Para Aristóteles, depende da posse das virtudes em grau máximo. É um homem bom a pessoa cujas qualidades são as melhores, são excelentes. Todo governante, na opinião do pensador grego, deveria ser necessariamente um homem bom. Era inadmissível para ele que aqueles que exercem o poder máximo no Estado não fossem também as pessoas mais virtuosas.

Aristóteles tinha plena consciência de que na comunidade política era impossível que todos os cidadãos fossem igualmente homens bons. Isso, porém, não impedia que cada um fosse um “bom cidadão”. Isto é, uma pessoa que cumpre com sua função na vida da coletividade. O governante, porém, deveria possuir necessariamente as qualidades éticas que o distinguiam acima de todos os demais.

A lição do grande pensador grego é uma crítica tanto aos governantes quanto aos cidadãos. Os primeiros são alertados para a necessidade de primarem pela virtude. Somente os homens virtuosos podem aspirar o comando sobre a coletividade. Os medíocres, os falsos, os mentirosos, os desonestos sequer poderiam ser admitidos à vida coletiva. O destino deles seria, no tempo de Aristóteles, a expulsão da comunidade. Para nós, na cadeia! Haja lugar para toda essa gente!

O aviso aos cidadãos em geral é para a necessidade de cada um assumir seu lugar na vida da comunidade. Quem se omite, não participa dos mecanismos criados para discutir e decidir sobre o bem estar geral também não merece viver na comunidade. Deveria ser expulso do convívio dos demais. Viver é conviver. Para isto não basta ter Carteira de Identidade e Título de Eleitor. É preciso querer e procurar a participação.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Aristóteles: a defesa de interesses é a destruição da vida política

by Francisco on segunda-feira, 8 de março de 2004

José Luiz Ames

Aristóteles refere um sábio dispositivo da constituição dos atenienses: quando a assembléia delibera sobre assuntos que envolvem a possibilidade de uma guerra com um Estado vizinho, os habitantes da zona fronteiriça são excluídos da votação. O motivo dessa medida é que eles poderiam não votar sem que os seus interesses particulares se impusessem aos interesses gerais.

Isso mostra uma concepção política oposta à mentalidade moderna. Nossos parlamentares organizam-se em “blocos” para defender interesses particulares. Assim, temos a “bancada ruralista”, a “bancada evangélica”, a “bancada da bola”, etc. Qual a conseqüência desse tipo de prática política nos dias atuais? Nossos representantes perderam de vista o interesse geral. Eles se reconhecem como representantes de determinados setores ou grupos da sociedade. Os acordos e negociações, próprios da prática política, acabam se transformando em troca de favores. Os privilégios concedidos a um grupo redundam em prejuízo da coletividade.

Todo problema começa já na campanha para conquistar o voto dos eleitores. Os candidatos se apresentam com a promessa de defenderem os interesses de uma região (um bairro, uma comunidade rural, um município) ou grupos (jovens, agricultores, mulheres, funcionários públicos). A afirmação desses interesses tem como conseqüência a fragmentação do espaço político. Em vez de ser a discussão do interesse público (de todos), torna-se a defesa do interesse privado (de alguns). Desse tipo de prática nascem as aberrações legais: leis que concedem privilégios àqueles que possuem determinada cor de pele, que desempenham determinada função sexual, que moram em determinada área geográfica, que realizam certa atividade profissional, etc. Ninguém quer abrir mão de um “direito adquirido”, como se pudessem existir direitos privados opostos ao interesse público!

Deveríamos aprender com os gregos: proibir que aqueles que estão identificados com determinados interesses de grupos pudessem votar em propostas que dizem respeito a esses grupos: que a “bancada ruralista” não pudesse votar em propostas sobre agricultura e pecuária; a “bancada da bola”, sobre questões do esporte; a “bancada feminista”, sobre temas que envolvem as mulheres; e assim por diante.

Isso implica na reeducação para a política. Hoje nossos representantes ficam orgulhosos quando conseguem provar que atenderam os “interesses de suas bases”! Imaginam que cumpriram integralmente sua missão quando defenderam os interesses privados daqueles que os elegeram. Compreendem-se como representantes de grupos e não da coletividade! São uma espécie de “despachantes de luxo”. Os eleitores, do mesmo modo, cobram dos eleitos o cumprimento de promessas miúdas, aquelas que lhes concedem favores e privilégios. Sem uma reeducação política, nossa vida coletiva continuará sendo uma luta selvagem pelo interesse privado. O privilégio, meu direito adquirido de hoje, é a destruição do direito de todos amanhã. Se houver amanhã.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Aristóteles: o que é ser cidadão?

by Francisco on quarta-feira, 3 de março de 2004

José Luiz Ames

Para Aristóteles, o homem realiza sua essência participando da comunidade política. O Estado, que é a palavra moderna com a qual designamos a comunidade política, existe para possibilitar a vida plena, a melhor das vidas possíveis aos homens. A questão é: quando pertenço ou faço parte do Estado? Será que basta morar num território para pertencer automaticamente ao Estado? Para responder a estas questões, é preciso saber o que é ser “cidadão”.

Aristóteles oferece uma definição curta e precisa: “cidadão é aquele que participa dos poderes do Estado”. Quer dizer, para ser membro da comunidade política não basta morar num país. É imprescindível possuir um poder efetivo de intervenção no Estado. Quais poderes? O povo governa, legisla e julga diretamente. Quem só obedece não é cidadão. Ser cidadão é obedecer e mandar.

Não resta dúvida de que o número de pessoas aptas a serem cidadãs depende do tipo de governo que existe num Estado. Aristóteles divide os tipos de governo em dois grandes grupos: os que governam em favor dos interesses privados (do tirano, dos ricos ou da massa) e os que governam em favor do bem comum. Os primeiros são injustos e os últimos são justos. Somente é possível ser cidadão nestes, pois quando se governa em favor dos interesses privados, todo poder está concentrado nas mãos de quem controla o Estado.

Contrariamente ao que costumamos ouvir, Aristóteles não pensa que a cidadania é um privilégio automático concedido a alguns em virtude de seu nascimento. A pergunta mais importante para Aristóteles não é: “quem pode ser cidadão?” Muito antes é: “o que o cidadão pode fazer?” É verdade que ele não reconhece o direito de cidadania às mulheres, aos escravos, aos estrangeiros e aos menores. Contudo, dois mil e quinhentos anos depois, quanto nós avançamos? Além de havermos suprimido legalmente a escravidão (de fato ela continua existindo entre nós em muitos lugares, como o confirmam as seguidas denúncias), somente incluímos as mulheres! Quando examinamos mais de perto essa inclusão, a mudança não parece muito expressiva: quantas mulheres participam, efetivamente, dos poderes do Estado? Além disso, enquanto para Aristóteles o cidadão deveria exercer diretamente os poderes públicos (de governar, legislar e julgar), hoje o único poder que o cidadão exerce diretamente é o da escolha de seus representantes. Somente estes exercem efetivamente todos os poderes em conjunto com um outro grupo, responsável pelas funções judiciárias, que sequer é eleito pelo povo, e os governantes (prefeitos municipais, governadores de estado e presidente da república).

Por um lado, a lição que Aristóteles nos oferece é de que, para ser cidadão, é preciso participar efetivamente da vida da comunidade política. Esta participação não pode limitar-se à escolha dos nossos representantes. Ela implica na obrigação de dizer livremente nossa opinião, de exigir os direitos garantidos pela lei, de cumprir os deveres estabelecidos na Constituição, de inserir-se ativamente nas diferentes formas de organização da sociedade responsáveis pela realização de uma vida feliz para todos.

Por outro lado, denuncia a demagogia escondida sob determinados mecanismos de participação popular introduzidos por alguns governantes: os “Conselhos”. Vistos mais de perto, estes Conselhos geralmente respondem, no fim das contas, unicamente aos comandos dos próprios governantes. Em lugar de serem instrumentos de participação direta e efetiva no poder, tornam-se formas de envolvimento justificadoras do autoritarismo sob a aparência de democracia. Um governante, quando não quer ou não consegue resolver um problema, o transfere a um Conselho. Com isso, a culpa pelo fracasso passa do governante para o povo! Em lugar de ser uma prática de inclusão, torna-se uma forma de exclusão política.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.