Ética é justiça na cidade de Aristóteles

by Francisco on sábado, 3 de janeiro de 2004

Francisco Antônio de Andrade Filho

Aristóteles (383-322 a.C.), observando a cidade de Atenas, neste olhar para a história, emite juízos de valores em suas duas obras clássicas: O Político e Ética a Nicômaco. Esses textos se entrelaçam numa mesma dimensão política, na constituição de uma cidade feliz e livre.

Na abertura da Ética a Nicômaco, Aristóteles aplica o termo política a um assunto único - a ciência da felicidade humana - subdividido em duas partes: a primeira é a ética e a segunda é a política propriamente dita. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e a vida de um homem é resultado do meio em que ele existe, das leis, dos costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele pertence. A meta da política é descobrir primeiro a maneira de viver (bios) que leva a felicidade humana, e depois a forma de governo e as instituições sociais capazes de assegurar aquela maneira de viver. A primeira tarefa leva ao estudo do caráter (ethos), objeto da Ética a Nicômaco; a última conduz ao estudo da constituição da cidade-estado, objeto da Política. Esta, portanto, é uma seqüência da Ética, e é a segunda parte de um tratado único, embora seu título corresponda à totalidade do assunto.

A Política é, assim, aquela ciência cujo fim é "o bem propriamente humano" e este fim é o bem comum. Por isso, Aristóteles considera a política e a ciência prática "arquitetônica", isto é, que estrutura as ações e as produções humanas.

A afirmação aristotélica, segundo a qual o "homem é naturalmente um animal político" (politikón zoõn), deve ser levada a sério, pois ela define o humanismo que Aristóteles reconhece e propõe. Aquele que "fosse incapaz de integrar-se numa comunidade (koinonia), o que seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de faze-lo, não é parte de uma cidade (polis), por ser um animal selvagem ou um deus".

A ética grega é uma ética natural, finalista procura um fim, um bem determinado: a felicidade. Essa finalidade só se encontra na comunidade política de Aristóteles.

Para os gregos o ser humano é natural. Mas infelizmente, hoje, nós perdemos essa idéia de natural, porque temos todo o artificio científico. Para Aristóteles o homem é um animal (bicho) como todos os outros. Mas esse bicho tem uma grande diferença: ele pensa. Ele tem a mesma dimensão de um animal, porém pensante. Um animal que se auto-direciona graças a sua inteligência e sua liberdade, isto é, ele é capaz de se propor uma direção de vida. Os outros seres são fatalmente submetidos às leis biológicas. O animal humano segue uma trajetória em direção a sua realização.

O ser humano é aquele que nasce o mais imperfeito de todas as criaturas e os outros animais nascem mais ou menos com tudo aquilo que eles precisam e alguns já nascem até capazes de providenciar sua subsistência. Eles nascem completos no seu roteiro biológico. Já os Seres Humanos nascem muito mais incompletos. Isto é o Ser Humano nasce com capacidade de alcançar sua meta. Essa meta é uma potencialidade que está em mim. Eu posso realizá-la ou destruí-la.

Dessa forma, o homem é um animal perigoso e muito limitado num ponto absolutamente importante: sua finalidade (fim) ou como se diz no jargão filosófico: ele tem que realizar a sua causa final.

Portanto, a realização do homem está entregue em suas mãos. Ele nasce sem sua finalidade conquistada. Muito pelo contrário, está tudo por começar. Por isso ele segue uma trajetória em direção à sua felicidade a ser conquistada. Essa trajetória passa pela família (primeira educação, a raiz), pela aldeia (o agrupamento humano, seria o tronco) e finalmente chega à comunidade política (que seria a copa da árvore). A convivência política é onde o homem se realiza perfeita e plenamente. Só assim é que ele alcança a plenitude da sua natureza.

O homem só alcança sua plenitude na comunidade. Ninguém alcança a felicidade solitariamente. Ninguém é feliz sozinho. Nós somos sempre felizes na solidariedade da comunidade política. Nós precisamos da sociedade e Aristóteles tem uma palavra maravilhosa que poderia estar na Bíblia: "o homem que não precisa da sociedade ou é um Deus, ou é um besta".

A ética individual é a ética das virtudes morais e pessoais. Está subordinada à ética pública, ou seja, à comunidade política. Ela se guia pela única virtude que é a da justiça. Para Aristóteles, a Política é uma ciência arquitetônica ou, em linguagem mais comum, um grande guarda-chuva que abriga e comanda todos os saberes da comunidade.

A meta da ética e da política é única: a felicidade, ou seja, a vida boa e virtuosa. É a realização do Ser Humano. A vida feliz não é uma simples satisfação ou contemplação interior. Não é uma satisfação da alma, minha, privativa. A felicidade não é meramente contemplação, ela é uma conquista, uma construção árdua e muito difícil. Exige o autodomínio. A formação do caráter.

Notem bem que Aristóteles não perde, na sua ética, a eliminação da paixão. É importante ter sensualidade, ter paixões, mas moderada, disciplinada. A coragem, por exemplo, é a virtude, o meio termo entre a covardia e a audácia. A virtude da coragem, por exemplo, equilibra o medo. A virtude da justiça modera a paixão pelo lucro. Enfim, a virtude é um meio termo, é o termo de equilíbrio entre excessos. Quem tem virtudes conquista a si mesmo. É o triunfo da razão sobre a sensibilidade, é a conquista da harmonia.

Diz Aristóteles que "o homem não é apenas um animal racional é, sobretudo, um animal político que convive com os outros". Ou seja, ninguém vive, é feliz ou virtuoso por si. Ninguém é ético diante do espelho. O homem precisa da comunidade política, pois ela visa ao bem de todos, ao bem público. A política não trata do indivíduo feliz, mas do cidadão integrado na sociedade, onde encontra sua plenitude.

A sociedade nos pode fornecer elementos para realizar as nossas competências, habilidades e desejos. Aristóteles analisa uma virtude que é única e exclusiva da sociedade: a virtude da JUSTIÇA, isto é, a virtude da cidadania, de um bem para todos. Toda cidadania está ligada a um conceito de justiça. Então, não adianta que eu reivindique ao Estado direitos, se eu não convivo numa comunidade onde todos não se tratam com justiça. Dessa forma, nunca haverá tribunais suficientes para resolver nossas causas, porque cada um de nós trapaceia o outro assim que puder. Isso não é uma convivência justa.

A comunidade política é regida por uma única virtude, que é a da justiça. Reguladora das relações entre os cidadãos livres e iguais, que se respeitam a partir do conceito de justiça. Para Aristóteles, cidadão justo é aquele que cumpre a lei e respeita a igualdade entre os outros. A justiça é a virtude da cidadania, na qual, cada um, por sua própria formação trata todos igualmente. Se praticássemos essa virtude os tribunais teriam muito pouco a fazer. Se eles existem e são tão solicitados, é porque nós não estamos praticando a virtude da justiça, da cidadania. Ética é justiça (PEGORARO, 2000). Bioética é justiça. Biodireito é justiça.

* Francisco Antônio de Andrade Filho. Doutor em Lógica e Filosofia Política/IFCH/UNICAMP/CAMPINAS/SP, 1994. É professor de Filosofia na Faculdade Maurício de Nassau e Membro do Comitê de Ética no Hospital Oswaldo Cruz/Recife.

2 comentários

o texto é muito bom

by Anonymous on 26 de setembro de 2006 às 10:04. #

Parabéns pelo excelente trabalho sobre a ética e justiça na cidade de
Aristóteles.

by Severino Erasmo de Lima on 16 de outubro de 2008 às 10:53. #

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