Filosofia da Medicina em Descartes [Estudos e Pesquisas em Bioética]
by Francisco on quarta-feira, 30 de março de 2011
por Francisco Antônio de Andrade Filho
Neste ano 2011, O Recado da Pesquisa comemora seus 12 anos de vida. Manteve-se firme e coerente na divulgação de estudos e pesquisas em Filosofia integrada com outros saberes humanos, Nesta edição, e em sua homenagem, convidamos nossos amigos internautas- de modo especial os estudiosos e pesquisadores em Bioética -, para um diálogo construtivo neste ciberespaço. Façam seus comentários. Bem – Vindos!
À luz da Filosofia, Descartes critica a Medicina. Em sua perspectiva, esse filósofo, no Século XVII, desenvolve uma teoria que contém em si uma infinidade de elementos da perspectiva mecanicista, através da qual, conhecimentos fisiológicos relativos ao corpo humano e à Medicina assumem o caráter rigoroso da mecânica e das matemáticas, a partir da busca de idéias claras e distintas, procurando, quanto possível, eliminar do sistema as concepções vitalistas e obscuras, de origem organicista. Disso vai brotar um novo ideal de Medicina que se liga ao ideal de mecanicismo: o homem, como sujeito consciente, deve construir a natureza como objeto do mundo. Sujeito às leis da natureza, ele deve levá-la à instância de decisão sobre o verdadeiro e o falso, o ético e o aético, a vida e a morte - a ética da vida e não uma "rede" em cujos "links" se acessam as tecnologias da morte.
Dentro de alguns textos de Descartes (Os Princípios da Filosofia, Discurso do Método - Sexta Parte, O Homem, entre outros), aparece essa visão de medicina.
Ao escrever a carta-prefácio dos "Princípios da Filosofia" (1643), Descartes está centrado sobre a idéia de sabedoria que para ele não tem o sentido somente de erudição - "literatus, eruditus, gnarus, studiosus, peritus, ingeniosus, sobrius, modestus, humanus", entre outros adjetivos que põem o protótipo do médico Hipócrates "divinus Hippockrates, medicorum omnium ac philosophorum primus"3 - não só essas qualidades da literatura, mas, conforme Descartes, "um completo saber de todas as coisas que o homem pode conhecer não só para ter uma regra em sua vida, como para a conservação da saúde e a invenção de todas as artes"4, das novas tecnologias da inteligência humana no século XVII.
Estamos, pois, diante de um modelo de concepção de Filosofia ou sabedoria que tem como alvo "a conservação da saúde e a invenção de todas as artes", porque, no fundamento ontológico da vida em sua totalidade dos seres, está um projeto unitário de ciência, voltado para a pluralidade dos objetos. E é nesse projeto que se justifica a colocação que vem logo a seguir nos Princípios, quando Descartes compara a Filosofia com uma árvore:
“Toda Filosofia é assim, como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os ramos desse tronco são todas as outras ciências, que se reduzem a três, a saber, a Medicina, a Mecânica e a Moral; considero a moral como a mais profunda e a mais perfeita, pois, pressupondo um conhecimento integradas outras ciências, é o último grau de sabedoria”.
Nesse texto, chamamos a atenção para o simbolismo da árvore e dos frutos a que Descartes se refere. Na árvore, há circulação de vida. Nos galhos da árvore, encontram-se os frutos, mas é preciso que a árvore seja viva. E a vida vem exatamente da seiva que circula de diversas maneiras, segundo processos diversos. Há no processo de nutrição de uma árvore um movimento de dois sentidos que liga à raiz aos frutos e os frutos à raiz.
Ancorados nesse texto famoso de Descartes que acabamos de citar e interpretar, contém em si mesmo todo o programa da obra cartesiana, pois temos a localização da noção de Medicina a partir da noção de sabedoria, da "sofia", do saber filosófico e da vida, de suas "preocupações e razões de esperança".
No projeto de Descartes, está presente a aplicação prática da Filosofia que, definida como sabedoria, tem uma razão e um tronco bem determinados: a Metafísica e a Física. A Medicina aparece, aqui, numa estrita vinculação com a Metafísica e a Física. Como dissemos anteriormente, o próprio Descartes afirma, na seqüência do texto, que é nos galhos que se colhem os frutos dessa árvore que representa não só o velho sonho da árvore da sabedoria como também a visão unitária das ciências, porque seu projeto é o de criar uma vinculação entre teoria e prática. A utilidade para a vida humana está nas partes superiores da árvore, nos frutos que se obtêm dela. Os galhos, nos quais se encontram as ciências práticas - a Medicina ocupa neles lugar de destaque - oferecem ao homem a possibilidade de perfeição em sua vida. A imagem da árvore da sabedoria na Bíblia interdiz ao homem a ciência, enquanto, na obra de Descartes, a árvore oferece-nos exatamente a sabedoria e as ciências.
Nesses fundamentos ontológicos da vida, investigamos a ética da procura do bem. E, além dos Princípios de Filosofia, encontrá-la-emos na Sexta Parte do Discurso do Método de Descartes 6, onde existem preciosas indicações do projeto cartesiano da Medicina.
Embasado no método de ciência universal, Descartes pensa criticamente a finalidade da Medicina, a nova Medicina objetiva, "Tornar os homens mais avisados e mais hábeis"7. Ele diz, inicialmente, que, depois de ter adquirido as noções de Física e comprovado e observado até que ponto elas poderiam conduzi-lo e quanto elas diferem das noções desenvolvidas anteriormente, conclui que não pode manter suas pesquisas no ocultamento "sem pecar contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens". Ética da pesquisa e na pesquisa.
Aqui, nesta obra, Descartes instaura sua crítica à Filosofia e à Medicina.
É preciso ter muito claro, presente, que Descartes tem em mira construir uma Filosofia que possa servir ao "bem geral da humanidade", porque constata que a Filosofia, até então, não o levara a algo de sólido. Para comprovar isso, é suficiente que nos lembremos das acerbas críticas que ele fez, ao longo do Discurso, sobre inutilidade dos conhecimentos filosóficos que não só tornarão a dúvida ainda mais radical, como também serão um fator que o levará a insistir na busca das idéias claras e distintas. A crítica de tal filosofia é assim expressa no Discurso:
“Pois elas fizeram-me ver que são muito úteis à vida e que em lugar desta filosofia especulativa, há uma, prática, pela qual, conhecemos a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos as diversas tarefas de nossos artesãos, que poderíamos empregá-los, do mesmo modo, a todos os usos aos quais eles convêm e, assim, tornamo-nos mestres e possuidores da natureza”
Aqui, podemos dizer que ao ideal puramente teórico e autárquico da Filosofia, preconizada por Aristóteles e pelos antigos como o saber mais incondicionado, Descartes vem acrescentar um novo aspecto, centrado na noção de prática e na idéia recorrente na renascença e em outros sistemas filosóficos de que o homem deve ser mestre e dominador da natureza.
Esse novo viés que Descartes introduz, opera uma torção fundamental na concepção de filósofo que vem, de certa forma, contradizer o parâmetro puramente teórico do seu estatuto.
Não é importante discutirmos se Descartes realizou ou não a totalidade de seu projeto muito ousado. De sua física, de sua mecânica e de suas teorias médicas, talvez pouco haja restado de sólido. Mas nós temos que ler sua obra a partir de outra perspectiva mais abrangente, ou seja, a partir do seu esforço e sua intuição de propor um método de um modelo que criam uma filosofia prática, útil, na qual terá lugar uma Medicina que tenta se coadunar com o modelo teórico.
Prosseguindo com a leitura da Sexta Parte do Discurso, Descartes anuncia que do gozo dos frutos da terra, passou, em seu sistema, à "consideração da saúde", porque a saúde é o primeiro bem e o fundamento de todos os outros e, partindo da ação recíproca da alma e do corpo, ele dirá que "se é possível encontrar algum meio que se torne comumente os homens mais ávidos e mais hábeis do que o foram até aqui, creio que é na Medicina que se deve procurá-lo"10.
Descartes prossegue em sua consideração sobre a Medicina de sua época, dizendo que ela contém pouca coisa que possa ser considerada útil e que, mesmo aqueles que a professam têm de reconhecer que o que se sabe dela é quase nada em relação ao que resta saber. Ele tem consciência de que há uma defasagem entre dois tipos de Medicina, como, a rigor, entre os dois tipos de filosofia que ele considera no Discurso.
Há muito ainda que não é conhecido, porque o método é falho na sua origem, porque não se levou às últimas conseqüências a proposta de uma nova filosofia. Para tanto, nosso autor dá mais um passo ousado quando diz que "poderíamos livrar-nos de uma infinidade de moléstias, tanto do corpo como do espírito, e, talvez, mesmo do enfraquecimento e da velhice, se tivéssemos bastante conhecimento se suas causas e de todos os remédios de que a natureza nos dotou".
Vamos encaminhar, agora, a discussão ao seu ponto final. Concluir essas reflexões de aproximação da Antropologia médica com as da Filosofia.
É verdade que a visão cartesiana do mundo e do homem, aplicada às ciências biomédicas, permitiu notáveis progressos científicos. No entanto, produziu também a progressiva despersonalização da relação médico-paciente.
Na visão cartesiana, o corpo aparecia como uma máquina amiúde necessitada de ser reparada através de tratamentos particulares e intervenções impessoais. Na visão sistêmica, ao contrário, o corpo hoje é visto como um sistema complexo de partes interativas onde o corpo e a mente não são separáveis.
É necessário um novo modelo de empresa terapêutica, uma "medicina de relação", antes da medicina de órgãos, que recupere a totalidade do ser humano e considere o paciente como pessoa na unidade de todas as suas dimensões. É nesta "aliança terapêutica" entre médico e paciente, que pode animar uma nova cultura da saúde que evite a "coisificação" do paciente e a perda da humanidade na arte médica.
Essa rehumanização da Medicina deve partir de uma revisão crítica da Antropologia médica, de sua educação, "de uma concepção antropológica na qual o ser humano é visto como totalidade integrada" e toda enfermidade é vista "como produto do homem inteiro: corpo, psique, espírito, história, sociedade".
Essa perspectiva personalista confere ao problema da saúde uma conotação ética. Torna-se uma tarefa de cada homem, o resultado de uma autodisciplina, o conhecimento da própria subjetividade, a capacidade de saber educar a própria alimentação, a sexualidade, a emotividade.
Somos capazes de saber viver. Temos razões de esperança.
Estude e Pesquise mais: Descartes, R. Princípios da Filosofia, Guimarães Editores: Lisboa, 1989
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