Francisco Antônio de Andrade Filho
Deixemos a filosofia falar, construir a linguagem do princípio da autonomia humana, do livre-arbítrio em diálogo com o teólogo bíblico e outros profissionais.
No texto clássico, O Conflito das Faculdades, escrito por Kant em 1798, observei alguns indicativos para se intuir a fala da filosofia com outras ciências. E tempo da “Aufklärung”, das luzes racionais. Kant parece refletir sobre as relações da Faculdade de Filosofia (considerada “inferior”) com as Faculdades de Teologia, de Direito e de Medicina (considerada “superiores”), e estipula que a função de filosofia é pensar livremente sobre os eventuais conflitos entre esses saberes ditos “superiores”.
A Faculdade de Filosofia, segundo este filósofo, precisa fazer-se reconhecer como o lugar de garantir sua completa liberdade de julgamento. Constituída de mestres, professores e doutores, quais “eruditos corporativos... independentes e letrados”, a Universidade era uma espécie de instituição dita autônoma - que estaria autorizada a admitir estudantes que vinham das escolas inferiores. Em oposição, Kant defende a “Faculdade de Filosofia, ciência livre, onde a razão seja autorizada a falar abertamente”.
Penso que, nessa questão, a idéia básica é a de construir a filosofia como ciência, com bases inteiramente novas, cuja verdade é “destinação total do homem e a filosofia desta destinação chama-se moral”.
Nada mostra melhor como a concepção filosófica de Kant é profundamente moral do que esta verdadeira ética do pensamento formulada em três preceitos:
O primeiro prescreve pensar por si próprio. O homem esclarecido é aquele que, ao superar a passividade da razão, sai de uma menoridade intelectual pela qual é o único responsável por “preguiça e frouxidão e que não é senão incapacidade de se servir de sua inteligência sem ser dirigido por outrem”.
O segundo é precisamente o preceito do pluralismo que premune contra o egoísmo lógico, “pois será que pensaríamos muito e pensaríamos bem se não pensássemos por assim dizer em comum com outros, que nos participam seus pensamentos e aos quais comunicamos os nossos?”.
O terceiro, enfim, ordena “pensar de maneira conseqüente” e é a máxima mais difícil de seguir, pois supõe que já se pratiquem as duas precedentes. Ela exige que se permaneça sempre de acordo consigo próprio, seguindo os princípios verificados jamais ceder à fraqueza de pedir para si uma única exceção à universalidade da lei moral: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal [...]”.
Ainda na “condição de filósofo”, lembro o texto do mesmo pensador alemão A Religião nos limites da simples razão, escrito por Kant em 1793. Nele, os princípios exegéticos da escritura, contemplados pelo teólogo bíblico, são de caráter filosófico “porque todos os princípios, quer sejam da crítica histórica, quer da crítica gramatical, sempre têm que ser editados pela razão”. Pensando assim, Kant escreve:
E insiste:
E A Crítica da Razão Prática (1788) registra:
Para Kant, a vontade autônoma é a que a si mesma sua própria lei, a moral autônoma, isto é, a lei originada na vontade; a heterônima é a vontade quando recebe passivamente de algo ou de alguém.
Neste diálogo e com responsabilidade ética da pesquisa, entramos no debate. Confrontamo-nos num contexto multidisciplinar, especificamente permeado pelo universo filosófico, de um lado; e, de outro, os motivos teológicos e de outros interesses com roupagem ideológica de dominação e de camuflagem da verdade.
Desta feita - no livre arbítrio, por exemplo -, passa-se ao largo das relações entre o princípio bioético da autonomia e as limitações que, numa expressão de Kant, são impostas pelo “poder eclesiástico, mal da religião”. É a vontade humana - o agir bem em favor de sua vida -, por exemplo, transfusão de sangue, manipulada ou dirigida por pastores religiosos, que não o paciente que precise de sangue para viver.
Pensando assim, o mal do livre arbítrio se dá no espaço sacro – eis a contradição de uma violência simbólica –, de um povo de Deus regido pelas leis de um “poder eclesiástico” repito, “mal da religião”, que se realiza na forma de uma igreja visível que esquematiza a igreja invisível. Atribui-se, então, a autoridade divina a esta igreja organizada, onde as leis estatutárias, e não morais e éticas, tornam o homem escravo, alienante e não com o seu maior bem de vida – a liberdade.
Sem ser livre, a vontade não poderia ser autônoma, nem ser moralmente meritória, boa ou má, ética ou a-ética. Busca-se identificar, assim, como as limitações ao poder de consentimento – condutas ideológicas –, acabam por limitar a autonomia, o livre arbítrio, o respeito à sua vontade, de auto-governar-se, e o pior, por uma limitação institucional, alienante e camuflada.
Para pensar mais:
Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Ed. 70, Lda, trad. de Paulo Quintela, Lisboa, Portugal, s/d.
Kant, I. El Conflito de las Faculdades, trad. de Elsa Taberning, Losada S.A., Buenos Aires, 1963.