CNBB: missa de elogio à revolução militar de 31 de Março de 1964
by Francisco on terça-feira, 27 de março de 2007
Francisco Antônio de Andrade Filho
Foi em 31 de Março de 1964. O fantasma do Comunismo rondava os altares sagrados dos templos religiosos e políticos. Movimentos sociais brotavam como forças políticas, organizadas via Ação Popular.
Em oposição, manifestações da Igreja proibiam seus fiéis, dirigentes e militantes a se pronunciarem. Os membros da Ação Católica e da Juventude Universitária Católica, entre outros grupos, condenados por aquela lei sagrada do “silêncio obsequioso”, não podiam aprovar posições teóricas e compromissos políticos daqueles que, "[...] devido à sua orientação naturalista e tragados na voragem revolucionária", não exprimiam o pensamento cristão. Ignoravam os valores morais, éticos e religiosos. Instilavam os conflitos sociais do sentimento de inconformidade e de revolta contra as condições da vida brasileira.
Foi o tempo em que a Igreja se apropria das forças sociais para se auto-reproduzir, na defesa de seu humanismo católico. Ela se serve dos movimentos de ordem social, econômica e política, muitas vezes, mobilizando seus próprios fiéis, subjugando ao poder coercitivo do Estado. Ela o faz para se inserir nas possíveis transformações e preservar o patrimônio material da Igreja escamoteado no moral-religioso de sua tradição. Reforça seu poder sacro, produz a violência do verbo, da palavra escrita e falada contra a humanidade social.
A Igreja Católica, contra a cidadania e a favor da ditadura militar, sentiu-se impulsionada pela própria realidade social. Pois, na Revolução de Março de 1964, procurou se sustentar, ser reconhecida, manter sua hegemonia, mesmo que isso exija uma atitude de contraposição aos próprios grupos sociais que trabalham para ela. Corpos e mentes, mutilados e despedaçados, eis os vestígios de sua contradição: proclama a liberdade como valor absoluto e, no entanto, a restringe para o outro.
Foi nesse tempo que a CNBB, no programa “Voz do Pastor”, em rede radiofônica e nos canais de televisão, convocava o Brasil e outros países a empunharem a bandeira da repressão. E divulga: “os países fortes têm a obrigação de impedir no mundo a vitória do comunismo que se impõe e sustenta pela violência e pela força brutal das armas".
Pressionados pelo sagrado, os movimentos sociais, acoplados à CNBB, se dissiparam. Foram destruídos, aniquilados pelos pastores divinos da Igreja. Domesticados para o Reino de Deus, para o reinado católico, tornaram presas fáceis, vítimas da repressão política e policial, atingidos pelo golpe de Estado de 31 de Março de 1964.
Temendo a desintegração e a desordem social da "marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder", a empresa católica, logo de início, embora com divergências posteriores, apoiou o poder coercitivo das Forças Armadas, subordinando e entregando aos seus agentes, aqueles grupos cristãos de ação política.
Aliando-se aos militares, a CNBB falou, escreveu e abençoou a repressão, a tortura, as prisões, espancamentos e assassinatos de seus líderes políticos formados e treinados nos Círculos de Estudo da Igreja. Pois, no Sacrifício da Missa, rezada em ação de graças pelo golpe, proclamava o elogio à Revolução Militar e exultava de alegria com a derrota dos comunistas, ao afirmar: “ao rendermos graças a Deus, que atendeu as orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos Militares que levantaram, em nome dos supremos interesses da Nação”
Era a bênção da Igreja ao poder militar, em benefício do poder e da herança da Igreja que, segundo a CNBB, impedia a exploração de conflitos sociais pelo "êxito incruento de uma revolução armada", que trouxe uma "sensação de alívio", sem dúvida momentânea; em ter apaziguado a violência substituída pelo vinho, transformado em sangue na celebração da Missa, instrumento de prevenção na luta contra a tirania dos comunistas.
Os católicos do Brasil aguardam Bento XVI no próximo mes de maio. O Pontífice já deu alguns sinais de sua conduta conservadora contra alguns direitos civis conquistados pelos brasileiros. Políticos não podem apoiar casamento homossexual. Os bispos não podem abolir o celibato. A missa deverá ser celebrada em Latim. Os teólogos da libertação devem ser submetidos ao “silêncio obsequioso”. Pois, em sua primeira exortação apostólica, intitulada “O Sacramento da Caridade”, a oposição da Igreja ao casamento homossexual não é negociável e políticos católicos têm a obrigação moral de manter tal oposição, assim como contra leis em prol do aborto e da eutanásia.
De outro lado, com a vinda do Papa ao Brasil, reproduz-se a estratégia do poder pastoral presente no pensamento político da Igreja de Roma. É preciso que o pastor-bispo conheça seu rebanho para poder dominá-lo. É sua tarefa determinar sistematicamente a nova ou a velha doutrina contra os ataques dos lobos vestidos da inteligência profana. Que ele esteja informado da consciência de seus fiéis para poder os dirigir, controlar as consciências humanas. Colonizá-las com a nova evangelização. Impor-lhes a mesma cristandade.
É o "poder sagrado" do Pontífice e dos bispos a "deliberar" as ações individuais e coletivas, a exigir obediência do homem, que é obrigado a se prostrar diante do poder divino, confessar e pedir perdão por ter violado as normas dos mandamentos estatutários da Igreja. Seu direito canônico é sagrado e de inspiração divina. É a Igreja de Roma no Brasil com seu poder medieval de censurar as consciências humanas, de interceptá-las; de interferir na liberdade civil de outros países. Pode?
PARA PENSAR MAIS:
CNBB, A orientação Naturalista da Ação Popular, in: REB 24 (1964).
Francisco Antônio de Andrade Filho
Deixemos a filosofia falar, construir a linguagem do princípio da autonomia humana, do livre-arbítrio em diálogo com o teólogo bíblico e outros profissionais.
No texto clássico, O Conflito das Faculdades, escrito por Kant em 1798, observei alguns indicativos para se intuir a fala da filosofia com outras ciências. E tempo da “Aufklärung”, das luzes racionais. Kant parece refletir sobre as relações da Faculdade de Filosofia (considerada “inferior”) com as Faculdades de Teologia, de Direito e de Medicina (considerada “superiores”), e estipula que a função de filosofia é pensar livremente sobre os eventuais conflitos entre esses saberes ditos “superiores”.
A Faculdade de Filosofia, segundo este filósofo, precisa fazer-se reconhecer como o lugar de garantir sua completa liberdade de julgamento. Constituída de mestres, professores e doutores, quais “eruditos corporativos... independentes e letrados”, a Universidade era uma espécie de instituição dita autônoma - que estaria autorizada a admitir estudantes que vinham das escolas inferiores. Em oposição, Kant defende a “Faculdade de Filosofia, ciência livre, onde a razão seja autorizada a falar abertamente”.
Penso que, nessa questão, a idéia básica é a de construir a filosofia como ciência, com bases inteiramente novas, cuja verdade é “destinação total do homem e a filosofia desta destinação chama-se moral”.
Nada mostra melhor como a concepção filosófica de Kant é profundamente moral do que esta verdadeira ética do pensamento formulada em três preceitos:
O primeiro prescreve pensar por si próprio. O homem esclarecido é aquele que, ao superar a passividade da razão, sai de uma menoridade intelectual pela qual é o único responsável por “preguiça e frouxidão e que não é senão incapacidade de se servir de sua inteligência sem ser dirigido por outrem”.
O segundo é precisamente o preceito do pluralismo que premune contra o egoísmo lógico, “pois será que pensaríamos muito e pensaríamos bem se não pensássemos por assim dizer em comum com outros, que nos participam seus pensamentos e aos quais comunicamos os nossos?”.
O terceiro, enfim, ordena “pensar de maneira conseqüente” e é a máxima mais difícil de seguir, pois supõe que já se pratiquem as duas precedentes. Ela exige que se permaneça sempre de acordo consigo próprio, seguindo os princípios verificados jamais ceder à fraqueza de pedir para si uma única exceção à universalidade da lei moral: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal [...]”.
Ainda na “condição de filósofo”, lembro o texto do mesmo pensador alemão A Religião nos limites da simples razão, escrito por Kant em 1793. Nele, os princípios exegéticos da escritura, contemplados pelo teólogo bíblico, são de caráter filosófico “porque todos os princípios, quer sejam da crítica histórica, quer da crítica gramatical, sempre têm que ser editados pela razão”. Pensando assim, Kant escreve:
E insiste:
E A Crítica da Razão Prática (1788) registra:
Para Kant, a vontade autônoma é a que a si mesma sua própria lei, a moral autônoma, isto é, a lei originada na vontade; a heterônima é a vontade quando recebe passivamente de algo ou de alguém.
Neste diálogo e com responsabilidade ética da pesquisa, entramos no debate. Confrontamo-nos num contexto multidisciplinar, especificamente permeado pelo universo filosófico, de um lado; e, de outro, os motivos teológicos e de outros interesses com roupagem ideológica de dominação e de camuflagem da verdade.
Desta feita - no livre arbítrio, por exemplo -, passa-se ao largo das relações entre o princípio bioético da autonomia e as limitações que, numa expressão de Kant, são impostas pelo “poder eclesiástico, mal da religião”. É a vontade humana - o agir bem em favor de sua vida -, por exemplo, transfusão de sangue, manipulada ou dirigida por pastores religiosos, que não o paciente que precise de sangue para viver.
Pensando assim, o mal do livre arbítrio se dá no espaço sacro – eis a contradição de uma violência simbólica –, de um povo de Deus regido pelas leis de um “poder eclesiástico” repito, “mal da religião”, que se realiza na forma de uma igreja visível que esquematiza a igreja invisível. Atribui-se, então, a autoridade divina a esta igreja organizada, onde as leis estatutárias, e não morais e éticas, tornam o homem escravo, alienante e não com o seu maior bem de vida – a liberdade.
Sem ser livre, a vontade não poderia ser autônoma, nem ser moralmente meritória, boa ou má, ética ou a-ética. Busca-se identificar, assim, como as limitações ao poder de consentimento – condutas ideológicas –, acabam por limitar a autonomia, o livre arbítrio, o respeito à sua vontade, de auto-governar-se, e o pior, por uma limitação institucional, alienante e camuflada.
Para pensar mais:
Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Ed. 70, Lda, trad. de Paulo Quintela, Lisboa, Portugal, s/d.
Kant, I. El Conflito de las Faculdades, trad. de Elsa Taberning, Losada S.A., Buenos Aires, 1963.
Francisco Antônio de Andrade Filho
Permitam-me criar este subtítulo “O Poder e o Sagrado na Cidade” para radicalizar o pensamento político da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Inspirado em René Girard, pretendo discutir a violência do poder sacro desta instituição católica contra a sociedade humana.
Filósofo francês, nascido em 25 de dezembro de 1923, observa o “mimetismo”, a fonte da violência humana que cria, constrói , aniquila simbolicamente as sociedades humanas e funda o sentimento religioso arcaico. Sua antropologia filosófica, fundada sobre princípios cristãos, descobre o “mecanismo da vítima expiatória”, segundo ele um mecanismo fundador de qualquer comunidade humana e de qualquer ordem cultural. Conforme seus intérpretes, desejos conflitantes e convergentes em direção à rivalidade mimética que gera a violência.
À frente da cidade, cabe ao político, se necessário e numa guerra, oferecer sacrifícios, inclusive de sua própria vida imortal. Pois, “um rei não pode reinar se não possuir a dignidade sacerdotal que... oferece aos deuses em nosso nome os sacrifícios...”.
Essa é uma das expressões do poder da CNBB em sua relação social. É o “poder sagrado” dos bispos ao de “deliberar” as ações individuais e coletivas, a exigir obediência do homem, que é obrigado a se prostrar diante do poder divino, confessar e pedir perdão por ter violado as normas dos mandamentos de Deus e da Igreja. É a CNBB com seu poder medieval de censurar as consciências humanas, de interceptá-las; de interferir na liberdade humana.
Para ser, a CNBB é prisioneira do caráter essencialmente hierárquico da Igreja, de sua estrutura social composta de desigualdades. Só admite como conferência a de toda hierarquia epíscopo-brasileira com o Papa, pastor universal, único, com poderes plenos, acima da lei canônica. Assistido pelo Divino Espírito Santo, o Pontífice é o único que não pode errar. É infalível.
Aqui, a CNBB segue as diretrizes do Vaticano, sem poder divergir das normas vindas de Roma. O Papa é soberano, sem limites. Sua vontade não é condicionada por nenhuma norma jurídica. A CNBB não tem o poder de editar normas que sejam irrevogáveis pelo Pontífice Romano. Estas somente passam a vigorar depois que o Papa as sanciona e promulga, de modo soberano e ilimitado. O Papa é ainda o dono do rebanho brasileiro. Os bispos apenas cultivam e exploram o solo para cuidar de suas ovelhas. Submissos a esse poder monoteísta-patriarcal, de totalitarismo religioso, de propriedade e manipulação da verdade, nesse processo de força moral da Igreja, os bispos reproduzem as relações de poder religioso no Brasil, com fortes influências nas esferas econômica e política.
Essa tradição do poder do Papa, daquela soberania do chefe visível da Igreja, representa para a CNBB o principal valor de coesão social, de consentimento das camadas populares e empresariais, de sua força junto ao Estado, de relações políticas nas formações sociais modernas.
É a adesão pessoal dos súditos da Igreja e de seus seguidores aos ditames de Roma,dita livre adesão da consciência individual, de cujo dirigente supremo, de qualidade sobrenatural, de um dom divino exclusivo do Papa, compete à CNBB obediência e bajulação, sem indagações nem protestos, sob pena de ser excluída e perseguida pela antiga Inquisição, a chamada hoje, Congregação para a doutrina da Fé.
Numa leitura de René Girard, no próximo capítulo encontrado, essa é a violência do poder sacro contra a sociedade humana. É Deus contra sua criatura. No Estado e na Igreja, em todos, não importando ser leigo ou religioso, manifesta-se o propósito de explorar, organizar e mandar, “de apresentar normas”. Altos burocratas, burgueses e religiosos, numa tensão constante, todos, a serviço do bem comum, se engajam com essa violência, no mesmo sistema mercantil, com a mesma sede de lucro, buscando a eficiência da máquina econômica e da dominação religiosa.
É a escrita jurídico-regimental da CNBB seguindo a tradição teocrática do poder espiritual, tentando sobrepor ao poder temporal na sociedade brasileira. Em litígio com a jurisdição política, o poder pastoral da CNBB ganha espaço para se auto-reproduzir, material e espiritualmente, junto aos movimentos católicos de ação política no Brasil. Para tanto, ela cultiva todas as formas de poder sagrado. Continuamente, celebra a Missa como “culto sacrificial” da Morte de Jesus Cristo, feito homem e imagem da vida e da morte de todos os outros homens, seus irmãos. É o único sacrifício, centro e mediação simbólica de valores do passado vinculados às novas condições da modernidade. Por outro, ela evangeliza o homem, trabalho cultural, processo histórico de cultivar práticas e técnicas de dominação colonial religiosa do ser humano.
É a violência, tradicionalmente institucionalizada, dentro do sagrado, ofensiva da CNBB contra os movimentos católicos de ação política no Brasil, a serem examinados em outros documentos oficiais, textos e estudos dessa sociedade religiosa.
Para discutir mais:
ANDRADE FILHO, Francisco Antônio de. Filosofia da Globalização, in: http://www.orecado.org. out. de 2000.
COMPÊNDIO DO VATICANO II, Constituições, Decretos, Declarações, Vozes, Petrópolis, 1983.
CNBB, Comunicação pastoral ao povo de Deus, 8 (1977), Paulinas.
GIRARD, René, A violência e o Sagrado, trad. Martha Conceição Gambini, Paz e Terra, 1990.