Hobbes:o Estado Natural é de Guerra Generalizada

by Francisco on domingo, 4 de dezembro de 2005

José Luiz Ames

Por que o homem vive em sociedade? Segundo os tratados dos antigos moralistas, isso seria devido à existência de um “objetivo final” ao qual o ser humano, inevitavelmente, tenderia. Este fim seria o “bem supremo” capaz de saciar plenamente o desejo humano. Hobbes não acredita que o homem persiga um objetivo final, nem um bem supremo. Visto desde sua natureza, o homem é um ser dotado de paixões descontroladas que jamais se completam. Se não existe uma meta no desejo humano, nem um impulso na sua natureza que faz buscar a companhia do outro, o que, então, o leva a se associar? Segundo Hobbes, “a origem das sociedades amplas e duradouras não foi a boa vontade de uns para com os outros, mas o medo recíproco” (Do Cidadão I, 2).

Qual a origem do medo? Fundamenta-se em razões objetivas e subjetivas. A razão objetiva reside na igualdade de fato de todos os homens, da qual surge a possibilidade de que todos se destruam na ausência de um poder superior que os freie. A razão subjetiva consiste na vontade recíproca de prejudicar-se, que nasce do direito de todos a todas as coisas. A conjunção dos dois fatores faz com que cada indivíduo seja levado “a desejar o que é um bem para si e a evitar o que é um mal” (Do Cidadão I, 7). Na ausência de qualquer ordem superior à razão de cada indivíduo, é racional supor que cada um tenha “o direito de usar de todos os meios para preservar sua vida” (Do Cidadão I, 8).

A conseqüência inevitável de uma situação na qual cada um tem direito a todas as coisas e todos estão em igualdade de condições para obtê-las, é a guerra generalizada. A existência humana fora do Estado é de luta de todos contra todos, uma condição em que, segundo Hobbes, “o homem é lobo do homem”.

A tese de que o estado de natureza é uma situação de guerra generalizada não deve levar-nos a pensar que o homem natural de Hobbes seja um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade até hoje. Qual é, então, o objetivo de Hobbes com esta descrição? É mostrar como seria o homem na ausência da lei garantida pelo Estado. Isto é, descreve o homem tal como ele é “naturalmente”. Como somos naturalmente? Somos opacos aos olhos de nossos semelhantes. Eu não sei o que o outro deseja de mim e, por isso, preciso fazer uma suposição de qual atitude é mais prudente. Como o outro também não sabe o que eu desejo, é igualmente forçado a supor o que eu farei. Dessas suposições recíprocas decorre que, geralmente, o mais razoável para cada um seja atacar o outro, seja para vencê-lo, seja para evitar seu ataque. Assim, a guerra se generaliza entre os homens. Por isso, quando não existe Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os outros é a atitude mais racional.

A conclusão que Hobbes nos faz extrair é de que, por natureza, o homem é um ser egoísta cujo único limite para seus desejos é a força que um outro homem é capaz de lhe opor. Somos lobos uns dos outros. O único modo de deter a destrutividade humana é por meio da instituição de um poder comum, o Estado.

Observando o comportamento humano atual, constatamos a veracidade dessas observações. Ali onde o Estado está ausente, prevalece a lei do mais forte. Para ficar nos exemplos mais comuns noticiados pela imprensa, é o caso da ação dos traficantes na cidade do Rio de Janeiro e dos pistoleiros no campo em muitos estados brasileiros. Quanto mais fracas se tornam as instituições do Estado, tanto mais cresce a força desregrada das paixões dos indivíduos. Por isso, na origem do crime e da bandidagem está a omissão de quem governa. O aumento da criminalidade é sintoma da ausência do Estado.

A pergunta política que ocupa um lugar central é esta: que é justiça? Esta questão remete, necessariamente, à seguinte: que é natural? A vinculação entre as duas questões deve-se ao fato de não ser possível apoiar-se no direito positivo quando o problema é fundar ou reformar um regime. Para o exame desta questão, a única norma pode ser a natureza, mais especificamente, a natureza do homem. Em relação a essa questão, Rousseau rechaça a idéia de que o homem seja dirigido pela natureza até um fim, a vida política. O Estado é obra puramente humana, que se originou do desejo da própria conservação.

Se a sociedade não é natural, devemos remontar a uma época anterior à sociedade civil para encontrar o homem tal como é por natureza. Esta investigação é necessária para determinar as origens do Estado. Considerando que a sociedade civil é convencional, suas leis somente terão alguma legitimidade se puderem fundar-se na natureza originária do homem.

Conhecer o homem natural exige um esforço quase sobre-humano, pois existimos na sociedade civil e, por isso, não podemos mais ter contato com ele. Como, então, ter acesso a ele? O caminho que Rousseau indica é: se quisermos conhecer o homem tal como é por natureza, devemos despojá-lo de todas as qualidades relacionadas com a vida em sociedade. Procedendo dessa maneira, o que podemos dizer acerca da natureza do homem?

Em princípio, diz Rousseau, somente podemos dizer que é um animal como outros animais. É ocioso por natureza e só se agita para satisfazer suas necessidades naturais. Possui apenas duas paixões fundamentais: a) o desejo de buscar seu próprio bem-estar e a conservação de si mesmo; b) a repugnância em ver perecer ou sofrer outros seres da sua espécie. Consideradas as coisas desta maneira, pode-se dizer que todos os homens são independentes e iguais por natureza. Do estado natural do homem não se pode derivar qualquer direito de um homem para governar os demais.

Existem duas características que distinguem o homem dos outros animais: a liberdade da vontade e a perfectibilidade. O homem tem consciência de seu poder e é o único capaz de melhorar gradativamente e de transmitir esta melhora a toda a espécie. Com base nestas duas características fundamentais, pode-se dizer que o homem natural se distingue por não ter praticamente nenhuma natureza, sendo pura potencialidade. Não há fins, mas tão somente possibilidades.

O homem natural é, pois, um animal ocioso que se compraz na sensação de sua própria existência; que se preocupa com sua conservação e se compadece dos sofrimentos de seus semelhantes; é livre e perfectível. Quando Rousseau descreve o estado natural do homem como um estado de bondade pura, não pretende apresentar nenhuma tese histórica. Rousseau tem plena consciência disso, pois observa tratar-se de “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente não existirá jamais e do qual deve-se, contudo, ter noções corretas para bem julgar de nosso estado presente” (Discurso sobre a origem.... Segundo Discurso). Não quer afirmar, portanto, que a existência dos povos naturais decorreria em plena harmonia de vida. Muito pelo contrário, Rousseau pretende deduzir da idéia da bondade original um apelo ao homem para que ele a realize em sua existência concreta, presente. E isso não apenas na vida individual, mas também, e principalmente, na vida em sociedade.

Rousseau apresenta sua época como aquela que reflete a imagem invertida da verdadeira natureza do homem. Se a verdadeira natureza do homem é o avesso daquilo que ele mostra na sociedade civil, como foi que ela se originou? Este será o assunto de nossa próxima reflexão.

* José Luiz Ames édoutor em Filosofia e professor da UNIOESTE, Campus de Toledo.

Um comentário

Só gostaria de parabenizá-lo pelo excelente ensaio. Você faz uma analogia muito boa da filosofia de Hobbes ao problema da violência que está ocorrendo no Rio de Janeiro, realmente é o exemplo de Estado ausente, Estado fraco.

by Aziel B. Silveira on 29 de setembro de 2006 às 14:46. #

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