Locke: os direitos naturais do homem

by Francisco on quarta-feira, 2 de novembro de 2005

José Luiz Ames

Quem não defende os direitos à vida, à liberdade e à igualdade como intocáveis? O problema é fundamentar racionalmente essa pretensão. Por que não posso atentar contra a vida de meu semelhante? Por que não posso usar da força para submeter as outras pessoas ao meu serviço? Por que não posso reivindicar privilégios em relação aos demais?

John Locke procura resolver essas questões na perspectiva do jusnaturalismo. O ponto de partida desse modelo é a afirmação da existência de um “estado de natureza” constituído por indivíduos que se encontram nele de forma não associada e independente de suas vontades. O Estado civil é uma criação artificial. A passagem do estado de natureza ao civil não sobrevém por uma evolução natural (como em Aristóteles), mas por uma ação voluntária manifestada num contrato. Por isso, se diz que o jusnaturalismo moderno é contratualista.

Assim, segundo a doutrina do direito natural antes de existirmos no Estado tal como hoje o conhecemos com suas leis e obrigações, os homens viviam de forma pacífica e ordeira num estado natural. Neste estado prevalecem a liberdade e a igualdade de todos. O que Locke entende por liberdade e igualdade? Para Locke, a liberdade é o direito dos homens para conduzir-se e dispor de seus bens como lhes convenha, respeitando os limites estabelecidos pela lei natural, sem depender da vontade de outra pessoa. A igualdade é a condição na qual o poder e a jurisdição são recíprocos e onde existe um equilíbrio entre as possessões. No estado de natureza não há subordinação nem submissão entre os homens.

O fato de a condição natural ser de liberdade, explica Locke, não significa que “cada um possa fazer o que bem quiser, pois o homem tem uma lei natural que o governa e que obriga a todos” (Segundo Tratado, cap. II, § 6). Essa lei natural nos ensina que “ninguém deve prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade e bens” (Segundo Tratado, cap. II, § 6).

Para que a lei natural possa ter vigência, alguém deve executá-la. Como todos são iguais no estado de natureza, ninguém tem o poder de impor-se sobre os demais. Resta, pois, que “qualquer homem tem o direito de castigar o culpado e de ser o executor da lei natural” (Segundo Tratado, cap. II, § 6).

O inconveniente do estado de natureza está precisamente em que todos podem castigar igualmente a violação da lei natural. Isto é, todos podem ser juizes em sua própria causa quando algum indivíduo abusar de sua liberdade. Quem é juiz em sua própria causa está exposto a que o amor próprio o leve a julgar com parcialidade, excedendo-se no castigo. Desta maneira, o castigo pode converter-se em vingança. Estes excessos desencadeiam inevitavelmente o conflito. Assim, o estado de guerra, uma vez começado, será contínuo.

O problema do estado de natureza está justamente nisso: a falta de um juiz imparcial que dirima as controvérsias entre os indivíduos. A inexistência desse juiz provoca a queda no estado de guerra. Dentro do estado de natureza é difícil reconduzir a situação de guerra à condição de paz. A única possibilidade para garantir uma paz permanente é a instituição da sociedade civil.

O que precisamos reter das presentes considerações é que a condição natural do homem é a de um ser livre e igual, com direito à vida e aos bens. Essa idéia é fundamental, porque permitirá que Locke conteste como contrária à natureza qualquer tentativa do Estado civil de interferir na liberdade e propriedade dos cidadãos, assim como o atentado às suas vidas ou a concessão de privilégios.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste, campus de Toledo.

Maquiavel: o direito e a força

by Francisco

José Luiz Ames

Governar é optar. O ato de escolha necessariamente favorece alguns e prejudica outros. Todo segredo da arte política consiste nisso: inventar um mecanismo de decisão que gere mais favorecidos do que prejudicados. Esta constatação remete a outra: política é conflito, luta, antagonismos, enfrentamentos. Numa palavra, política é guerra, violência. Pode até ser pacifista, mas não pacífica. Isto é, pode ter a paz como objetivo, mas não como meio.

A política é guerra não porque as pessoas vivem se matando umas às outras, mas porque vivem num constante enfrentamento de interesses. Esses interesses são agrupados por partidos. Os partidos têm “militantes”. A guerra tem “militares”. Nos dois casos, a luta é comandada por uma “milícia”, isto é, por combatentes. Uma vez que a política se rege pela lógica da guerra, tem em vista destruir os interesses do outro e dominá-lo. Assim, a política é esta singular relação humana na qual uma parcela de homens exerce o poder sobre e contra outra parcela. Logo, poder político é violência e opressão.

O que determina o poder que um indivíduo exerce sobre o outro, o poder que um partido exerce sobre a sociedade, o poder que o Estado exerce sobre a coletividade, é a força relativa de cada um. O Estado é mais violento do que o indivíduo, porque reivindica o monopólio da força legítima. “Legítima”, eis o problema do “direito” de oprimir. A violência praticada por um indivíduo sobre outro é punida pelo Estado em base ao “direito”. Onde se funda o direito do Estado? Unicamente no fato de monopolizar a força. O que limita esse direito? A força de fato dos indivíduos. Do mesmo modo, os direitos dos cidadãos são determinados por suas próprias forças e limitados pela força do Estado. Isso significa que o poder do Estado é absoluto de direito, mas não de fato, pois é limitado pela força dos indivíduos. Igualmente, o poder político é opressor, mas a opressão é finita.

Maquiavel traduz essa luta por meio de uma metáfora. Segundo ele, “existem dois gêneros de combates: um com as leis e outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais” (O Príncipe, cap. XVIII). As leis, isto é, o “direito”, se fundamenta na força. O homem se assegura no animal. O racional é sustentado pelo irracional.

Uma vez que é imprescindível o emprego da força, isto é, da natureza animal, Maquiavel sugere “escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que fizerem simplesmente a parte do leão não serão bem-sucedidos” (O Príncipe, cap. XVIII). A força não é bruta. A verdadeira força é aquela que vem somada à astúcia. O poder do Estado não está no número de militares ou de armas. Está nos ardis que emprega para universalizar as escolhas parciais que toma. A verdadeira força está na raposa, não no leão.

A violência política é dissimulada. A raposa disfarça, aparenta estar morta. Soldados e tanques escancaram a opressão. Revelam a face odiosa da violência e alimenta a revolta. A ostensiva demonstração de força acaba por mostrar-se fraqueza. O leão fica preso nos laços. É preciso a raposa para soltá-los. É necessário habilidade para dissimular a violência da força bruta. Para aqueles que acompanham as tropas americanas no Iraque, nada mais é preciso ser dito.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste, campus de Toledo.

Hobbes e a razão calculadora

by Francisco

José Luiz Ames

Hobbes, endossando a idéia formulada pela primeira vez pelos gregos, defende que a condição natural do homem é a de um ser racional. Contudo, diferentemente dos gregos e medievais, a racionalidade não é mais entendida como a capacidade de conhecer a essência das coisas. Para Hobbes, a razão é a faculdade de raciocinar, isto é, de calcular. Assim, raciocinar é o meio do qual, dadas certas premissas, chega-se forçosamente a certas conclusões

Para Hobbes, dizer que o homem é dotado de razão equivale a dizer que é capaz de descobrir quais são os meios mais adequados para alcançar os fins desejados. Por exemplo, se quero ser presidente de um Clube (o fim desejado), agir racionalmente significa calcular os meios dos quais posso lançar mão para chegar lá: mostrar-me simpático com os sócios, prometer não aumentar a mensalidade, promover eventos, etc

No estado natural, condição na qual o indivíduo se encontra enquanto não existe Estado político, é a razão que indica ao homem regras de conduta, que Hobbes chama de “leis naturais”, destinadas a proteger sua vida. Ele formula vinte “leis naturais”, mas a mais importante de todas, e à qual todas as demais estão referidas, é a primeira: “buscar a paz quando for possível alcançá-la; quando não for possível, preparar os meios auxiliares da guerra” (Do Cidadão I, 2).

Acontece que o fim previsto pela lei natural fundamental, bem como pelas demais, só é alcançado se for respeitada por todos. Não terei interesse em respeitar a regra se não estiver seguro de que os outros também a respeitarão. No entanto, no estado de natureza, quem me assegura que os demais respeitarão as leis naturais que eu estou disposto a respeitar? Que segurança eu tenho de que, agindo racionalmente, isto é, buscando a paz, os demais também farão a mesma coisa?

Em virtude do fato de as leis naturais obrigarem apenas em consciência e não externamente, ninguém pode estar seguro de que os demais respeitarão as regras naturais. As leis existem, mas não são eficazes. Por isso, seria o cúmulo da imprudência seguir as regras de prudência indicadas pela razão. Assim, é preciso encontrar um modo de tornar eficazes as leis naturais; isto é, de fazer com que os homens atuem segundo a razão e não conforme as paixões. O único modo de conseguir isso é, segundo Hobbes, através da instituição de um poder tão irresistível que converta em desvantajosa qualquer ação contrária. Quer dizer, um poder que leve o homem a calcular que perderá mais do que seria capaz de ganhar agindo contra a paz. Este poder irresistível é o Estado.

Hobbes ensina que o homem até é capaz de saber que agir em favor da paz é bom para ele. No entanto, ele só fará isso se descobrir que todos farão a mesma coisa. O único modo de saber que os outros também buscarão a paz é por meio de um poder comum, forte e centralizado, que se impõe à vontade dos indivíduos. Agora o homem teme infringir a lei, porque calcula as perdas que isso lhe acarretará. Por isso, as penas pela infração da lei devem ser tais que os indivíduos tenham mais a perder do que a ganhar com sua violação. Como é instituído esse poder comum, o Estado? É tema para outra reflexão.

Hobbes nos faz pensar sobre as motivações de nossas ações. Por que respeitamos a lei? O que faríamos se não houvesse um poder coativo capaz de nos obrigar a respeitar certas regras de conduta? Hobbes sugere que nossa razão é capaz de nos aconselhar determinadas regras de prudência na ausência de um poder comum. No entanto, seríamos imprudentes se as respeitássemos sem a certeza de que os outros também o farão, pois se apenas nós as cumprirmos poderemos ser vítimas daqueles que as violam. Assim, a lei que nos obriga e muitas vezes odiamos porque nos oprime é a garantia de nossa própria sobrevivência. Sem ela nada valeríamos.

* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste, Campus de Toledo.