Modernidade e suas contradições

by Francisco on domingo, 27 de setembro de 2009

por Francisco Antônio de Andrade Filho

"Se o progresso das Ciências e das Artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes." (Rousseau)



É tempo de modernidade. Do progresso das tecnociências. É tempo de "crise" da razão moderna. De contradições. De limites. De novas possibilidades de intervenção no mundo e no próprio homem. De pluralismos éticos e científicos. Contraditoriamente, modernidade é tempo de destruição da natureza, da vida, do homem.

De um lado, há tempo e na história humana, já haviam florescidas as idéias dos filósofos: uma nova postura do mundo, da relação entre o homem e as realidades integradas, do homem, ser de cultura e produzido pela sociedade. É a modernidade nascida do Iluminismo, privilegiando o universal e a racionalidade, apostando na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais de sua época. São "novos tempos" em que se inaugura uma nova forma de pensar e de agir do homem em sua capacidade de inovar, de produzir ciência frente as grandes descobertas do seu tempo.

De outro, essa mesma modernidade revela sua face contraditória e seus limites. A filosofia entra em "crise"[1]. Crise dos valores morais e éticos. Ela nasce com a Ilustração, pela confiança iluminista na razão como força de progresso nas ciências e nas artes. De processo de moralidade e de eticidade. E entra em crise com a própria modernidade no desafio à relação entre ética e política, nas esferas da vida privada e pública.

A filosofia é desafiada a pensar-se em si mesma e na relação com outros saberes. Proclamada a falência da razão, atravessada pelo reino do desejo e da sensibilidade contra as ilusões da objetividade, a filosofia é questionada, convidada a procurar respostas e solução para dilemas da moral e da ética iluministas.

Na verdade, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a Immanuel Kant (1724-1804), entre outros, a vida e a natureza foram refletidas como vias que permitem juízos éticos quanto ao bem e ao mal, o justo e o injusto, o errado e o correto. Da filosofia sensualista de D'Alembert, Holbac e Helvetius que, nas sensações do prazer e do desprazer, do agradável e do desagradável, buscaram respostas para a felicidade e auto-realização do indivíduo.

É curioso observar que, nesses tempos modernos, mesmo a pretexto das "Luzes" e do "Progresso", de "Humanidade", de "Civilização", Biociências, Biotecnologias, Ciberespaço, Internet, Globalização, entre outras palavras-chave da modernidade, mesmo assim, o homem ocidental continuou escravizando os seus semelhantes, em nome de uma igualdade de todos os homens. Atualmente, o direito à segurança é um direito fundamental do cidadão. Precisamos admitir que o progresso científico não garante o progresso moral e nem os direitos humanos. Perdeu-se o sentido do "ethos" como "lugar em que se habita", de sua dimensão axiológica, dos modelos sócio-culturais; e das regras e dos comportamentos tradicionais. Como se pensar nessas realidades?

Talvez as respostas de Rousseau e Kant a este desafio nos sirva de apoio para as questões fundamentais do mundo atual. São novos desafios ao saber filosófico, novas indagações da atividade reflexiva, suas respostas às problemáticas da pós-modernidade.

Problematizando as indagações de seu tempo, o filósofo genebrino constrói um saber filosófico rico de expressões éticas[2]. Para ele, o homem nasce livre. Repugna-lhe a crueldade e a violência do "progresso" e as contradições das ciências e das artes de seu tempo.

Na verdade, a Academia de Dijon, na França do Século XVIII, lança, no Jornal "Mercure de France", um primeiro desafio à filosofia moderna. Indagava-se "Se o progresso das Ciências e das Artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes" [3] . Em conexão deste texto integrado com outras obras do mesmo pensador, conhecemos outros desafios publicados pela mesma Instituição: "Qual a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens?" [4]

Rousseau responde pela negativa. Diz: Não! à primeira questão. Pensa, negando. Negando, pensa. Apaga e ascende a luz da razão. A razão vê no escuro e no claro. Critica e afirma. Cultiva a natureza. Trabalha as ciências e as artes. Não as destrói, nem as artes, nem as ciências. Faz progredí-las. Perante elas, cria uma racionalidade ética e de direitos culturais e artísticos. Confirma-o, pois, Rousseau, no Primeiro Discurso [5], ao delimitar o objeto de sua pesquisa: aquelas "verdades que importam a felicidade do gênero humano", ou da "virtude que defendo".

Insiste ainda na busca de uma fundamentação dos desafios políticos lançados à filosofia. E a encontra naquelas indagações de seu tempo. Criticando os costumes corruptos, da inversão ética nas práticas políticas do Século XVIII, assim pensava:

Na política, como na moral, é um grande mal não se fazer de algum modo o bem e todo cidadão inútil pode ser considerado pernicioso (...). Os antigos políticos falavam constantemente de costumes e virtudes, os nossos só falam de comércio, de dinheiro e de poder. Avaliam os homens como gado. Segundo eles, um homem só vale para o Estado pelo seu consumo.[6]

Para Rousseau, a razão política está em crise. Na cidade não existe o cidadão. Foi anulado, nulificado, sem "costumes e virtudes". O comércio, o dinheiro e poder são valores humanos para uma minoria e a maioria excluída, à margem da sociedade, sem esses bens econômicos. Sem viver. Sem direitos.

Para esse pensador, a mesma razão moderna foi diluída. Virou pó, em crise cultural. Péssima e inútil produção científica. Cultura envergonhada pelos letrados ociosos, perniciosos ao Estado. Chusma de escritores obscuros que, em pura perda, "devoram a substância do Estado" [7]. E indaga: "Que é a filosofia? Qual o conteúdo das obras dos filósofos mais conhecidos? Quais são as lições desses amigos da sabedoria? " [8] Cada um grita em praça pública: "Vinde a mim. Só eu não engano." Eu sou de Voltaire. Eu sigo Bobespierre. E a sociedade distante, sem resposta para seus problemas. A filosofia é desafiada. Rousseau buscou sua fundamentação e a encontrou. Pensou seu tempo, sua história.




Notas

1. Vários pensadores atuais entram nesta discussão. Ver Manfredo Araújo de Oliveira, A Filosofia na Crise da Modernidade, Ed. Loylola: São Paulo, 1998. Adauto Novaes (org.), A Crise da Razão, Companhias das Letras: São Paulo, 1996.____________ , Ética, Companhia das Letras: São Paulo, 1992.
2. Essas idéias iluministas constituem objeto do projeto de pesquisa Princípios do Direito Civil: Sociedade Civil Segundo Jean-Jacques Rousseau, dentro do Programa de Bolsas de Iniciação Científica/UNICAP, para os alunos Tiago de Melo Correia e Ângela Celi Leite Valdivino, orientados pelo Prof. Dr. Francisco Antônio de Andrade Filho.
3. Rousseau, J.-J. Discurso Sobre as Ciências e as Artes, Nova Cultural: São Paulo, 1987, P. 137.
4. ____________. Discurso Sobre a Origem das Desigualdades entre os Homens, Nova Cultural: São Paulo, 1987, p. 7.
5. idem, Discurso Sobre as Ciências..., p. 137.
6. op. cit. p. 148.
7. id. ib.
8. cit. 153



* texto publicado neste site originalmente em 1999.

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