Resenha
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão
Edições 70, LTDA. – Lisboa, Portugal.
Francisco Antônio de Andrade Filho
Identificada com a consciência, a religião da simples razão não tem necessidade de revelação divina. Esta tese básica do iluminismo religioso está presente na obra de Kant: “A religião nos limites da simples razão” (1793), trabalhada em quatro partes, a seguir, resenhada.
Na primeira parte (Kant: 29 - 61), a religião aparece como símbolo da luta entre o bem e o mal. Para isso, o autor faz longas elucubrações do mal na natureza e do mal radical. Bem e mal pertence não à natureza, e sim ato livre e responsável do homem. Ele discute ser o homem agente de seus atos. Pressupõe a razão pura prática, do “ser terrestre dotado de razão (...) fundamento subjetivo do uso de sua liberdade”. Pensante. Livre.
Assim, o mal moral reside só no livre arbítrio, e nunca no objeto que determina. Não está nas leis da natureza, mas na lei moral reconhecida como “ratio cognoscendi” da liberdade, na regra que o arbítrio se dá – a ordem ética. Por isso, escreve o autor: “o mal só pode surgir do mal moral, não dos simples limites de nossa natureza”.
Na segunda parte (63 – 61), penso que Kant fala de Jesus Cristo, dos dogmas cristãos da encarnação e redenção, no contexto da luta entre o bem e o mal. O princípio bom tem que dominar sobre o homem. A Providência, aqui identificada em Cristo, é a personificação do princípio bom, no qual se cumpriu a perfeição moral e para a qual todos os homens devem elevar-se a este ideal.
Mestre dos ensinamentos morais-não de origem divina -, torna a perfeição da moralidade. Nele, a comunidade racional reconhece a si mesma: “mestre de ensinamentos divinos, mas bem propriamente humano”, cuja comunidade ética pode fazer dele um exemplo e não arquétipo, “pois este não pode ser procurado em nenhum outro lugar do que na razão”.
Na terceira parte da obra em apreço (93 – 146), Kant fala de um povo moral de Deus e comunidade política (gemein Wesen). O que é isso? O filósofo alemão defende que o homem deve proteger sua liberdade e tornar possível o triunfo do bem mediante uma sociedade governada pelas leis da virtude. Esta será a sociedade ético-civil – um estudo (Zustand} jurídico-civil “(...) em que se encontram reunidos só leis não coercitivas, isto é, sob simples leis de virtudes”. Seu espaço sacro é a reunião de todos eticamente, numa casa onde todos se sintam bem.
O conceito de uma comunidade ética é de um povo de Deus regido pelas leis éticas que se realiza na forma de uma igreja, de um poder civil e garantido pela intervenção da divina-natureza. Assim, a igreja visível e racional esquematiza a igreja invisível. Cria o poder eclesiástico, mal da religião, coagindo “o ir a ela e a profissão de fé de seus estatutos ou a celebração de seus rituais (que) são tomados do modo pelo qual Deus propriamente quer ser servido”.
Na última parte (146 – 198), Kant fala do verdadeiro e falso culto, religião e sacerdócio. Para ele, a única verdadeira religião é a moral. A religião revelada é imposta e servil. É ilusão. Falso culto. Os “doutores” convertem-se em oficiais ou funcionários, dignitários eclesiásticos que transformam o ministério em império, apresentando-se a si e a todos e a tudo como lei divina, sacrificando a liberdade própria da religião natural. A este culto falso chama de fetichismo, nestes termos:
“O sacerdócio é a constituição de uma igreja em que reina o culto fetichista, isto é, onde, em lugar de princípios morais, são leis estatutárias, regras de fé e observância o que constitui a base e a essência do culto”.
Enquanto isso, o mesmo autor pondera em diálogo com o que se afirma:
“A religião natural enquanto moral [...] é um conceito racional prático puro [...] tem em si um grande requisito da verdadeira igreja, isto é, a universalidade (universalitas vel omnitudo distributiva) – a unanimidade”.
Advertido e censurado por Wöllner, criticado por seus pares, Kant vai em frente, ousando pensar de modo diferente. Sua preocupação central é descobrir essa dimensão inteligível que eleva o mal a um princípio razão. É a partir dele que o fenômeno religioso pode ser pensado. Pode discutir uma resposta à impotência sabida nossa que se abre a uma outra instância, sem que isso torne religioso o conceito que permite tal compreensão.
Esta postura filosófica do mal radical (radikales bose) provoca reações em Schiller, Herder, Goethe e outros pensadores da ilustração. Para eles, Kant não podia perder tempo divagando sobre a natureza má do homem, recuperando a doutrina católica do pecado original, do mito da queda de Adão e Eva.
E você, o que pensa e como vê essa resenha em discussão? Eis um convite: ouse saber mais, lendo, interpretando e criticando mais ainda:
ANDRADE FILHO, F.A. de. Razão e política – ensaios de filosofia moderna (tese de Doutorado). Maceió: EDUFAL, 1994.
ROMANO, Roberto. Kant e a Aufkl¨larung, in Corpo e Cristal: Mar Romântico (63 a 91) Brasiliense, São Paulo, 1982.
* É Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência, na área de Filosofia Política, pela UNICAMP/SP. Professor Titular, aposentado da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Docente em Filosofia na Faculdade Maurício de Nassau. Membro do Comitê de Ética de Pesquisas seres Humanos no Hospital Oswaldo Cruz –UPE/Recife/PE. Avaliador do curso de Filosofia no INEP/MEC. Membro do Grupo de Estudos de Filosofia no Brasil (Seção UFMG).