Democracia delegativa

by Francisco on segunda-feira, 11 de setembro de 2006

José Luiz Ames

A América Latina, diferentemente do que aconteceu na Europa e nos EUA, passou nas últimas décadas por uma transição dos regimes autoritários dominados pelos governos militares para a democracia. No esforço de qualificar estas democracias, tem-se tentado adjetivá-las. Entre estas tentativas está a de denominar nossa experiência democrática atual de “democracia delegativa”.

No cerne do modelo democrático vigente em nosso meio está a idéia do sufrágio universal. O sufrágio universal faz com que impere na política a mesma lógica competitiva que domina na economia. A democracia é como um “mercado”, isto é, um mecanismo institucional para eliminar os mais fracos e para estabelecer os mais competentes na luta competitiva pelos votos e o poder. O papel central nesta competição está destinado à liderança política.

A liderança política é um método para chegar a decisões políticas, em que os indivíduos adquirem o poder de decidir por meio do voto do povo. A democracia fica reduzida a um procedimento de escolha mediante o qual o povo cria um governo elegendo um líder entre líderes que competem livremente pelo voto dos eleitores. É à liderança que cabe chamar à vida as massas, despertá-las e provocar suas opiniões e vontades. As lideranças são eleitas para decidir, inclusive para decidir sobre quais temas deverão ser tomadas decisões. A democracia fica restrita, então, à competição de lideranças enquanto as não-lideranças (os eleitores) participam da “coisa pública” unicamente nas eleições. Aquele que ganha a eleição está autorizado a governar como lhe parecer conveniente. Não fica submetido às promessas feitas no decurso da campanha. Depois da eleição, espera-se que os eleitores retornem à condição de espectadores passivos.... até a próxima eleição!

Por que os cidadãos (os “delegadores”) delegam? Fundamentalmente, devido ao seu desinteresse pela coisa pública, à irracionalidade frente à falta de informação e pela distância da responsabilidade. Como se explica que os governantes “salvadores da pátria” possam fazer o que quiserem sem sanção dos votantes? Basicamente por causa da idéia de que, mediante o voto, se firma um cheque em branco.

A democracia delegativa é fortemente individualista. Pressupõe-se que os eleitores elejam, independentemente de suas identidades e afiliações, a pessoa mais capacitada para cuidar dos destinos da coletividade. As eleições nas democracias delegativas são um processo extremamente emocional e que envolve altas apostas: vários candidatos competem para saber quem será o ganhador da delegação para governar sem quaisquer outras restrições, a na ser aquelas impostas pelas relações de poder.

A democracia delegativa, como vemos, transfere (“delega”) ao eleito o direito e a responsabilidade pelos destinos da coletividade. Os eleitores (“delegadores”) limitam sua participação política à eleição. Os cidadãos se comportam em relação aos candidatos como consumidores: escolhem o “produto” que melhor responde aos seus desejos. A propaganda eleitoral contribui decisivamente para a mercantilização da política. As lideranças apresentadas como candidatos recebem uma produção similar àquela que se faz para vender qualquer mercadoria: o consumidor (eleitor) compra (vota) pela embalagem. Por isso, o argumento de que o “mais capaz” é eleito é falso. Por causa da propaganda, o eleitor não tem como saber quem é o mais preparado. A grande diferença é que, enquanto o consumidor pode trocar a marca do produto no momento em que lhe aprouver, o eleitor só poderá trocar de governante depois de quatro anos de “uso”. Para completar a desgraça, na política ninguém é punido por propaganda enganosa.

*José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da Unioeste/Campus de Toledo.