Edilton Siqueira
Já foi dito que a história dá voltas, e às vezes parece que isso acontece. Menos por fatalidades esotéricas e mais por situações que se repetem, o desenrolar de vários conflitos faz lembrar - e muito - realidades distantes. As semelhanças não se atém apenas às naturezas dos conflitos, mas também às "justificativas" para os mesmos. E em meio ao teatro de argumentos, a verdade permanece escondida atrás do pano, como quem aguarda o encerramento de uma encenação que não tem fim.
Todas as mentalidades mais ou menos esclarecidas sabiam que a revolta do povo iraquiano no pós guerra seria agressiva. Amenizar as diferenças entre invasores e invadidos exige soluções que vão muito além da propaganda televisiva ou do derrame de dólares, hambúrgueres e refrigerantes. No entanto, o que impressiona a muitos analistas, especialmente após os últimos ataques envolvendo organizações "independentes", como a ONU e a Cruz Vermelha, não deveria ser motivo para tanta surpresa se todos lembrassem um elemento fundamentalmente simples: o enraizamento cultural.
Não estamos falando, aqui, de dominação simplificada pelo extermínio, como foram as ocorridas na América Latina. Dizimando populações socialmente evoluídas mas enfraquecidas por guerras recentes ou baixa tecnologia (tupis, andinas, astecas etc.), os povos europeus conseguiram amalgamar seus valores junto a nossa tradicional tranquilidade e informalidade, promovendo situações impensáveis, como o desconhecimento de toda uma geração a respeito de sua própria raiz cultural (tome como parâmetro nossa "geração shopping center").
Acostumados a baixar suas regras onde quer que chegassem, do Império Romano à implantação da ALCA, o fato é que tornou-se regra comum para os poderes ocidentais a idéia de que a cultura clássica e suas derivadas seriam melhores ou mais elaboradas que as demais. É por isso que muitos valores absolutamente universais, como o equilíbrio oriental, por exemplo, ainda hoje são vistos mais como excentricidades da "turma da auto-ajuda" e menos como resultado efetivo de culturas com mais de 4 mil anos de formação.
Os puritanos parecem estar ainda assustados com as crescentes dificuldades impostas pela dominação em território iraquiano. Tomando como parâmetro o exercício representado pela tomada - e "manutenção" - dos territórios afegãos, os americanos devem ter considerado que seu dinheiro e propaganda seriam suficientes para convencer todos os filhos de Maomé de que, como numa Cruzada Moderna, estariam sendo agora libertados da opressão dos "infiéis", inicialmente no Iraque e depois no restante do Oriente Médio. Acontece que esses "novatos" estão pisando hoje no berço da civilização persa, na terra de reinados habilidosos como os de Hamurábi e Nabucodonosor, e isso definitivamente não se resolve com atitudes tão simples quanto trocar colares e espelhos por ouro e prata, ou mesmo petróleo.
Imanência cultural
A região entre o Tigre e o Eufrates já está acostumada às sucessivas tomadas de poder. Talvez por isso as culturas que permeiem a região tenham como uma das principais características a imanência na memória do povo, a despeito das adversidades a que estejam expostos. Foi assim com a cultura judaica, que persistiu ao domínio egípcio, ao cristianismo romano, ao holocausto nazista, e que hoje emprega toda sua flexibilidade comercial e rigidez moral no domínio do comércio norte-americano e, conseqüentemente, mundial. Não podemos crer que seja diferente para com as demais etnias que evoluíram sob condições semelhantes, na efígie do Islã, pois não há culturas melhores ou piores.
Nós, ocidentais, estamos acostumados a realidades que mudam de cara quase instantaneamente, talvez pela necessidade clássica de mudar de parâmetros ao sabor dos novos ventos, em face das novas conquistas. São diversos os momentos em que nossas tradições foram negadas ou se "torceram" para atender às exigências do poder. Somos fiéis claramente flexíveis, a exemplo de católicos modernos que conhecem a posição oficial do Vaticano sobre métodos anti-concepcionais, mas não hesitam em tomar pílulas ou mesmo usar preservativos.
Assim, é difícil compreender porque mulheres se sujeitam ao uso da burka sob um calor causticante; porque podemos passar horas dentro de um templo hindu e, na saída, encontrar nossas sandálias exatamente no mesmo lugar em que as deixamos; compreender que a resignação nipônica em virtude das adversidades não é um exemplo de fraqueza, mas o extrato de uma cultura que sabe que o tempo é senhor das escolhas, uma cultura capaz de se envergar como o bambu na ventania e ainda assim permanecer vivo, reconduzindo sua economia ao topo do mercado em pouco mais de 40 anos com absoluta maestria.
Suavizando o veneno da desigualdade
A inclusão da Cruz Vermelha e da ONU como alvos dos recentes ataques terroristas em Bagdá não representa outra coisa senão a negação generalizada dos nossos valores ocidentais e imediatos. Não se trata simplesmente de selvageria, como querem os "novos romanos", a taxar como bárbaros todos os povos para além do seu domínio. Tais atitudes representam, antes, o recurso de um povo no combate pelo seu espaço, pela sua terra, pelos seus princípios. Assim rechaçam nossa condolência internacional que anestesia a dominação, como quem evita a morfina que precede o veneno. Não se deixam enternecer pelos afagos de nossas "organizações independentes", mas cerram a um só golpe os próprios punhos e os nossos lábios e olhos. E o que assistimos como o terror da barbárie é para eles a luta desesperada pela sobrevivência.
Após o término dos primeiros combates, enquanto se apresentava a condição de Bagdá como cidade arrasada, alguém mencionou que a mesma já fora saqueada e destruída várias vezes ao longo da história, e que seria novamente reconstruída. Mais que um exemplo de resistência, essa constatação deveria servir-nos de alerta: que uma cultura forte sobrevive aos escombros de sua morada; e que não pode haver respeito aos direitos humanos quando não há respeito à cultura e supremacia de um povo. Por mais que os trabalhos de assistência sejam bem intencionados, é preciso lembrar que um povo acostumado a repressões, revoltas e guerras - inclusive santas, não será facilmente subjugado pelo trinômio "propaganda - dinheiro - piedade".
Talvez agora, quando os homens de jaleco branco se vêem visivelmente ameaçados pela fúria de quem teme mais perder a fé que a própria vida, as Nações Unidas tomem consciência de que apenas um princípio pode nortear o convívio de nossas culturas tão heterogêneas: o respeito. E se esse princípio não condiz com nossa realidade de mercado, nossa guerra de conquistas econômicas e nossa mídia de massa, é mais um sinal de que o erro está nos elementos que compõem nosso pensamento. Não foi a primeira vez que tal constatação foi tornada visível, e seguramente não será nossa última chance de aprender.
Já foi dito que a história parece dar voltas. Mas a verdade é que reconhecer os próprios erros é coisa complicada, e dar a mâo à palmatória tem sido tarefa quase impossível. Recuar, ceder espaços, viver e deixar viver, são atitudes que não condizem com a convivência entre leões, águias, falcões e outros bichos agressivos. Quando toda essa teimosia vai terminar, ninguém sabe. Talvez quando todos os povos do mundo já tiverem experimentado sua parcela do domínio universal; talvez mesmo nunca. Assim como na Idade Média, a Cruz não tem para todos o mesmo valor. E mais uma vez a terceira opção entre ela e a espada permanecerá escondida sob o pano, ao fundo do palco.
Recife, 28 de outubro de 2003.