Colaboração ou exploração

by Francisco on sábado, 13 de setembro de 2003

Fernanda Arruda Kruel

Conforme matéria publicada no jornal Zero Hora, de 10/09/03, o Ministro da Educação, Cristovam Buarque, teria declarado à Radio CBN que, para ele, os jovens de classe alta não deveriam ter acesso às universidades públicas e, os que já têm, deveriam colaborar com o país, após formados.

Que as universidades públicas estão abertas à todos, é notório. Que tanto jovens de classe baixa quanto os de classe alta são inseridos, todos os anos, nessas universidades, também sabemos. No entanto, quantos desses alunos saem da universidade aptos e, principalmente, dispostos a trabalhar para o sistema público (aquele mesmo sistema que lhes proporcionou o estudo)? Poucos. Poucos, pelo fato de que a maioria, ou seja, os de classe alta, saem da universidade a fim de buscar lucro. E, lucro fora da rede pública. Afinal, vivemos em um mundo capitalista e não é pelo fato de termos nos formado em uma universidade pública que, necessariamente, devemos prestar nossos serviços, gratuitamente, ao sistema público.

Considero hipocrisia falar em colaboração. E os impostos pagos por nós, depois de formados, não contam como contribuição? E, enquanto os jovens de classe alta terão a obrigação de colaborar com o desenvolvimento do país, os governantes usufruem das melhores condições, sem terem de pagar por isso. Os ministros, particularmente, não pagam sequer habitação. Quase todos os seus gastos saem do "bolso" do governo, ou melhor, dos impostos pagos por nós, os quais são arrebatados por esses políticos.

Não é justo que o ensino público, seja ele proporcionado a ricos ou pobres, seja cobrado mais tarde. A questão está em ampliar as verbas e também as vagas para o ensino superior público e não em obrigar determinada classe social, no caso, a alta, a contribuir com o sistema após dele usufruírem.

* Fernanda Arruda Kruel, Acadêmica do curso de Letras/Inglês - UNIFRA, Santa Maria/RS

O Programa "Fome Zero" e a Exploração da Solidariedade Humana

by Francisco on domingo, 7 de setembro de 2003

José Luiz Ames

É difícil dizer qual traço nos torna radicalmente diferentes dos demais seres animais. Já houve quem dissesse que era o fato de sermos racionais, ou porque somos dotados da capacidade de linguagem. Sem entrar na discussão das diferentes hipóteses, quero avançar a seguinte idéia: o que nos torna ímpares é o fato se sermos capazes do gesto gratuito da doação. É verdade que também entre os outros animais a fêmea se doa às suas crias. No entanto, somente o ser humano é capaz de um comportamento solidário para com o outro, quer o conheça ou não. Assim, sou humano na mesma medida em que ajo solidariamente para com o outro. Quem se fecha em si mesmo nega sua própria humanidade e se reduz à animalidade.

Esse desejo de fazer o bem ao outro é cultivado, sobretudo, pelas Igrejas. Em qualquer uma de suas muitas denominações, os indivíduos são motivados ao comportamento solidário. Pertence aos seus princípios doutrinários motivar os fiéis a uma prática solidária como condição para uma vida plena neste mundo e na eternidade. As Igrejas instituíram a prática da solidariedade formando uma verdadeira rede de proteção social. Todos conhecemos os diferentes mecanismos contínuos de promoção da solidariedade organizados por elas. Só em Toledo poderíamos forma uma lista extensa deles. O melhor de tudo é que, em geral, todos eles obtêm resultados extremamente positivos.

O êxito alcançado por essa instituição da sociedade civil, entre outras que não referimos por economia de espaço, despertou a cobiça do Estado. O programa "Fome Zero" vem se constituindo num instrumento de caridade pública. Apesar de a propaganda oficial alardear que essa é apenas a ponta visível do programa e que o objetivo é implantar mecanismos de erradicação definitiva da fome, nada de concreto foi apresentado nesta direção até o momento. Assim sendo, o programa governamental se mostra uma tentativa de substituir a sociedade civil na sua histórica missão de assistência.

Em princípio, parece não haver nada demais nesta ação governamental. O problema todo surge quando refletimos sobre o significado da prática solidária para as pessoas. Enquanto se constituía numa prática das instituições da sociedade civil, notadamente das Igrejas, o ato de doar é motivado pela gratuidade. A recompensa pelo gesto de doação é um sentimento bom de fazer o bem. O único promovido pela ação é o necessitado, o destinatário do gesto gratuito de solidariedade.

A partir do momento em que o Estado assume a tarefa de promover a assistência em base ao apelo ao sentimento humano de solidariedade, o gesto perde toda a sua beleza. Mais do que o necessitado, os defensores de uma determinada ideologia política se beneficiam com o gesto de doação. O Estado explora o sentimento de solidariedade instrumentalizando-o a favor de interesses partidários. Quando as pessoas, motivadas pela massiva campanha publicitária oficial, começarem a tomar consciência disso, rejeitarão o gesto de doação. Ninguém suporta ser usado. Menos ainda quando usam o que temos de mais digno: nossa bondade.

O Estado, sabidamente um agente corruptor, é incapaz de agir desinteressadamente. Se ele quiser fazer caridade, deveria utilizar um pouco dos 37% da riqueza que ele expropria dos cidadãos através dos impostos. É uma indignidade explorar o belo sentimento de solidariedade humana a favor de um programa de governo. Essa prática é mais grave do que toda espoliação provocada pelos tributos aplicados aos cidadãos, pois mata na raiz o que temos de tipicamente humano: nosso sentimento bom de ser solidário.

* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE/Campus de Toledo.