Eutanásia e Distanásia: duas questões de bioética e cidadania

by Francisco on terça-feira, 11 de novembro de 2003

Francisco Antônio de Andrade Filho

Eutanásia (ANDRADE FILHO, 2001), Vida e Morte. Três expressões interligadas. Relacionando-se. É que forças opostas, unidade e luta dos contrários, constituem movimentos comuns e inerentes a todas as coisas materiais e espirituais. Em contínua transformação. Inacabadas, no mundo da finitude. Fazem sentido, uma vivendo em função da outra. Eutanásia: a vida produz a morte. Distanásia: as máquinas hospitalares prolongam o sofrimento e a morte. Mercantilização da vida e da morte.

Lembram-nos Fátima Oliveira (1997), Hubert Lepargneur (1999), entre outros, que definem etimologicamente, a eutanásia (eu = bom; thanatos = morte) significando "boa morte, morte suave e sem sofrimento", morte harmoniosa e morte sem angústia. Fácil. Feliz. Domínio sobre sua própria vida ou sobre a vida de outrem. Libertação livre do viver e do morrer. "Homicídio por piedade", ação de aliviar o sofrimento de doentes terminais.

O tema da eutanásia se tornou, hoje, um dos mais agudos e debatidos no campo da ética médica e da Bioética, à luz da Filosofia e áreas afins, como por exemplo, a Teologia, a Medicina, a Psicologia, a Pedagogia, entre outros saberes humanos nos dias de hoje. O enorme progresso das tecnociências, nos últimos anos, abriu horizontes de esperança e bem-estar, de vida e morte, pela capacidade da medicina de prolongar indefinidamente uma vida por meios artificiais, motivos sociais, humanos e econômicos. Vejamos alguns destaques dos bioeticistas nesse campo, do jogo da vida e da morte na fronteira da Eutanásia, da Distanásia e outras formas de vida e morte do homem e da mulher.

Para Márcio Palis Horta (1999), "morrer é parte integral da vida e da existência humana (...), tão natural e imprevisível como nascer. Sua tradicional definição do instante do cessar dos batimentos cardíacos tornou-se obsoleta. Hoje, ela é vista como um processo, como um fenômeno progressivo e não mais um momento, ou evento. Morrem primeiro os tecidos mais dependentes do oxigênio em falta, sendo o tecido nervoso o mais sensível de todos. Três minutos de ausência de oxigenação são suficientes para a falência encefálica que levaria à morte encefálica ou, no mínimo, ao estado permanente de coma, em vida vegetativa."

Logo a seguir, Leocir Pessini (2003) insinua algumas respostas hodiernas sobre Eutanásia e Distanásia vinculadas com questões éticas, formuladas assim: a vida humana deve ser sempre preservada, independentemente de sua qualidade? Deve-se empregar todos os recursos tecnológicos para prolongar um pouco mais a vida de um paciente terminal? Deve-se utilizar processos terapêuticos cujos efeitos são mais nocivos que o mal a curar? Quando sedar a dor significa abreviar a vida, é lícito fazê-lo? Até que ponto se deve prolongar o processo de morrer quando não há mais esperança de vida, de a pessoa voltar a gozar de saúde, e todo esforço terapêutico na verdade só adia o inevitável, prolonga a agonia e o sofrimento humano? Manter a pessoa "morta-viva" interessa a quem? Aos mercadores da saúde?

São perguntas incisivas com prováveis respostas abertas à discussão. Filósofos, teólogos, médicos, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas e pedagogos falamos. Dialogamos a nível de conhecimento simbólico numa linguagem da realidade. A busca de respostas a essas questões éticas constitui um desafio aos pesquisadores com argumentos a favor e contra a prática desta bios e thánatos humanas. Vejamos alguns tópicos para nossa reflexão neste momento.

A moral hipocrática objeta contra a prática da eutanásia. A Deontologia médica inspirada no filósofo Hipócrates é falaciosa. É uma camuflagem. Filósofo, indago: proibir os profissionais de saúde a jamais ministrar medicamentos letais, mesmo a pedido do paciente, é uma teoria ideal desse filósofo ou uma prática contraditória, vivenciada nos hospitais? E vocês, colegas deste conceituado Comitê de Ética, concordam? Thomas More, em sua obra Utopia (1516), defende-a , quando "a doença é incurável e faz-se acompanhar de dores agudas e contínuas angústias". E o iluminista Montaigne (1987) disse que o principal problema da Filosofia é a morte. E pensou, assim, em seu livro Ensaios, escrito em 1580/88: "Quem não souber morrer que não se preocupe. A natureza o instruirá plenamente num instante e o fará com exatidão".

Estas atitudes filosóficas frente à prática ou não da eutanásia e da distanásia fazem pensar a relação médico-paciente. Confiança nele ou desconfiança na injeção que o cura ou o mata? É verdade que o paciente se coloca nas mãos do médico. Mas, o que fazer quando o próprio médico informa: "Não há mais nada a fazer", ou quando "a própria medicina cria situações desumanas, nas UTIs, por exemplo, e depois se recusa a assumir responsabilidades por ela", e ainda no fato de que "as novas condições do morrer obrigam os médicos a se ocuparem também da morte do ser humano"?

Filósofo, penso que estas discussões e seus argumentos "contra" e "a favor" sobre essas formas de vida e morte tendem a camuflar outras dimensões de exclusão sócio-econômicas do cidadão. Escondem outras formas de violência contra ele. A eutanásia ("má morte"), a distanásia ("morte dolorosa", fútil), narcotanásia ("morte narcotizada"), mistanásia ("morte infeliz"), ortonásia ("direito de morrer com dignidade") e outras palavras correlatas são, na prática, verdadeiras "penas de morte", sem julgamento e sem lei. São sentidos ideológicos da vida e da morte, acobertando outras violências cotidianas. Violências que matam: a fome, seqüestros, corrupções econômicas e políticas. A eutanásia e a distanásia é também exclusão da cidadania, sua ausência. Exploração e embrutecimento do homem. Sua alienação. Em outros termos, o próprio homem inventa a linguagem dessas formas existenciais e outras experiências culturais, de vida e de morte. Onde estaria a autonomia do paciente nessa sua "libertação da morte"? Nos seus familiares? Nos profissionais da saúde? Qual, então, uma outra alternativa? E existe?

O teólogo Pessini (2003: 401 - 402) pensa que, diferentemente da eutanásia e da distanásia, a ortonásia "morte no seu tempo certo" é sensível ao processo de humanização da morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com aplicação de meios desproporcionados que imporiam simplesmente nada mais que sofrimentos adicionais. Uma contribuição fundamental da ética teológica é, assim, nos presentear com uma mística no resgate de sentido e valor da vida humana. A reflexão ético-teológica, hoje, trabalha não apenas com conceito da vida e da dignidade humanas estritamente ligado à biologia (...) aos processos da natureza biológico-química-orgânica. Os conceitos teológicos assumem valores maiores por causas humanitárias, opções de fé. São os mártires que sacrificam suas vidas por causa do Reino dos Céus e em nome do Cristianismo. Outros mártires, homens-bomba que sacrificam suas vidas por causa do Nirvana, vida eterna dos muçulmanos.

Segundo esse raciocínio, vida e morte, além do seu aspecto natural, são cultivadas (Boff, 1999). E argumenta-se, assim: a vida na sua dimensão física não é um dado absoluto, mas um bem fundamental. São experiências culturais. Mortos e vivos estão sempre juntos e contradizendo-se. A vida contra a morte. A morte contra a vida. Opondo-se. Invisíveis. A vida é tudo. Morte é ruína. Vida e morte transformam-se em mercadorias. Vida e morte nas igrejas e nas sinagogas. Vida e morte nos hospitais. Vida e morte nos campos de batalha. Vida e morte nos assaltos. Vida e morte nas empresas. Vida e morte na cidade e no campo: de milhares por violência, da guerra bélica de Busch e do terrorismo de Sadam e Biladem. De falta de pão para o ser humano viver e da mais alta tecnologia para "bem-morrer". De exclusão do homem e da mulher, de seus bens materiais e espirituais.

Somos programados para viver e morrer. Projeto genético. Criamos a linguagem de outro projeto institucionalizado. Cultivamos outras vidas e outras mortes. Da eutanásia, abreviação de vida; da distanásia, prolongamento da agonia, vida fútil, sofrimento e adiamento da morte; da ortonásia, "morte no seu tempo certo", morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem sofrimentos adicionais; e tantas outras formas físicas e simbólicas, de vida e morte na atual sociedade globalizada.

E mercantilizamos a vida e a morte. Utopia do reino de Deus e do Alá. Vida no além-morte. Céu. Nirvana. Inferno. Terra. Aqui viveremos e morreremos. Livres e algemados. Filósofos, teólogos, médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e pedagogos. Todos, na sua interface de vida e de morte.


Suporte Bibliográfico

- ANDRADE FILHO. Francisco Antônio de. "Eutanásia: a vida produz a morte", in: BIOÉTICA, Boletim da Sociedade Brasileira de Bioética, Ano 3 - n.- Maio de 2001.
- BOFF, Leonardo. Morte e ressurreição na nova antropologia, in Leonardo Boff, Ética da Vida. Brasília: Letra Viva, 1999: 219-237
- LEPARGNEUR, Hubert . Bioética da eutanásia - argumentos éticos em torno da eutanásia, in Bioética (rev.), V.7 num.01-1999. Conselho federal de Medicina, 1999: 41-48.
- MONTAIGNE, Michel de.(1553-1592): Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
- OLIVEIRA, Fátima. Bioética - uma face da cidadania. São Paulo: Moderna, 1997
- PESSINI, Leo. "Questões éticas - chave no debate hodierno sobre a distanásia", in: GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. Bioética: Poder e Injustiça, Edições Loyola, 2003: 389 a 408.


*Comunicação apresentada, a convite, na reunião do Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos, do HUOC/UPE, em 30 de outubro de 2003.

** Francisco Antônio de Andrade Filho é Ph.D. em Lógica e Filosofia da Ciência, IFCH/UNICAMP, Campinas/SP. Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Alagoas. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Bioética/PE. Membro do Comitê de Ética e Pesquisa envolvendo seres Humanos/Hospital Universitário Osvaldo Cruz- HUOC/UPE. Membro da Comissão de Avaliação das Condições de Ensino - ACE/INEP/MEC, do Curso de Filosofia.