José Luiz Ames
Frente ao fenômeno da morte, duas posições se fazem possíveis: uma estritamente intelectual, outra pessoal-existencial. A atitude intelectual considera o fenômeno da morte como uma realidade que não afeta a pessoa nem exige dela uma decisão. Trata-se de interpretá-la unicamente à luz da razão. Esta postura, própria das ciências positivas, estuda objetivamente a morte como um fenômeno natural e inevitável comum a todos os seres vivos. Afora a explicação das causas da morte, não resta nela qualquer mistério a ser desvendado.
Na atitude pessoal-existencial, ao interpretar a morte, a pessoa interpreta-se a si mesma. A pergunta sobre a morte é uma interrogação acerca de si mesmo. A medicina pode ter explicado porquê aquela pessoa morreu, mas nem por isso deixamos de nos interrogar sobre o sentido daquela morte. Por que morremos? Por que esta pessoa e não outra? Por que agora e não mais tarde? Por que desta maneira? Esses questionamentos revelam a insuficiência da atitude estritamente intelectual.
Por que esta experiência nos toca tanto? Somos seres de desejo. O desejo é sintoma de privação, de falta. Todo nosso esforço vai no sentido de realizar o desejo. Na satisfação do desejo, nem tudo tem a mesma importância. Somos tocados mais profundamente por algumas coisas do que por outras. Comum a todas elas é o fato de nenhuma nos saciar plenamente. Não há limite para o desejo humano. Estamos condenados ao mais. Diferentemente dos animais, o homem se recusa terminantemente a ser o que ele é.
É precisamente aqui que entra a experiência da morte: na experiência do limite. Na morte nos deparamos com uma situação que nos atinge visceralmente, que toca a totalidade de nosso ser. Diante da morte, a vida se torna pergunta. Enquanto para a satisfação do desejo dependemos de nós próprios, a morte nos aponta para uma situação diante da qual somos impotentes. A morte atesta a impossibilidade do controle humano sobre a vida.
A morte é a vivência humana que atinge o cerne da nossa existência. Na experiência da morte tomamos consciência da necessidade de salvação. A salvação necessariamente vem de fora. Ninguém é capaz de se salvar sozinho. Sempre somos salvos por alguém. Por que sentimos falta de salvação? Porque experimentamos nosso limite e reconhecemos não estarmos suficientemente fundamentados em nós próprios. Confrontados com a morte, nos percebemos necessitados do outro.
O Dia de Finados é o momento em que cada um se vê confrontado com o limite da existência humana. A consciência de que somos carentes de salvação, nos abre para a Transcendência. Não buscamos nossa salvação no vazio. Feito náufragos num rio, somente nos sentimos a salvo quando colocamos os pés na terra firme. A abertura para a Transcendência é na direção do Infinito. Somente um Absoluto é capaz de revelar-se a nós como suficientemente fundado para oferecer a salvação da qual somos carentes.
Reverenciar os mortos, no Dia de Finados, é um modo de fazer a experiência mais radical da existência humana. Nada nos toca mais profundamente do que a experiência do limite. Confrontados com a morte, tomamos consciência de nossa insuficiência. Carentes de salvação, nos abrimos para o Absoluto. O Dia de Finados pode transformar-se numa rica oportunidade de passarmos da superficialidade do cotidiano, onde tudo gira sem novidade, para a profundidade abissal de nosso interior e descobrirmos nossa radical carência de salvação. O Dia dos Mortos se tornará, então, no Dia dos Vivos: na descoberta do Outro Absoluto como único fundamento seguro para uma vida que não se extinguirá jamais.
* José Luiz Ames é doutor em Filosofia e professor da UNIOESTE/Campus de Toledo.